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Foto do escritorNayara Reynaud

TIRADENTES 2021 | A encruzilhada do hibridismo ou um antidocumentário?

Atualizado: 18 de mai. de 2021


Cena do filme brasileiro Açucena (2021), longa-metragem baiano dirigido por Isaac Donato | Foto: Divulgação (Mostra Tiradentes)

Dando o pontapé inicial para a Mostra Aurora, aquela que é, não só a principal seção, como a mais desafiante da Mostra Tiradentes, Açucena (2021) é um enigma em forma de filme. Primeiro, porque a personagem que dá nome a esta produção baiana é uma esfinge nunca revelada pelo longa-metragem que acompanha uma senhora de 67 anos, chamada Guiomar Monteiro, e sua família durante as preparações para o aniversário de sete anos de Açucena, que, na prática, é uma comemoração para ela mesma. Esse mistério sobre sua identidade também recai sobre a própria obra do diretor estreante Isaac Donato que, embora classificada como um documentário no catálogo do festival, segue a tendência em voga na produção contemporânea do gênero no Brasil do hibridismo com a ficção, porém, de uma maneira bem inusitada.


Tal impressão já é deixada logo na abertura. O quadro apresenta apenas uma visão superior de uma casa, sob uma luz crepuscular. A voz em off de Guiomar conta sobre seu desejo de possuir itens de lojas que não conseguiria comprar e que foi durante este período que surgiu Açucena em sua vida, enquanto a trilha sonora de O Grivo eleva a tensão e confere o tom de terror para o momento. Trata-se de algo pontual e que se repete apenas em outra sequência bem posterior.


Logo após essa introdução, uma câmera oblíqua leva o público para olhar, do lado de fora, pela janela desta casa e, a partir de então, em planos fixos e metonímicos, revelar partes de sua dona e personagem-objeto que tem uma grande paixão por bonecas, as quais esta senhora mantém, muitas delas guardadas dentro da caixa original, em um grande e emblemático quarto rosa. Acompanham-se os preparativos para a festa, desde a filha dela lavando as estátuas da Branca de Neve e os Sete Anões no jardim à neta etiquetando os nomes de cada boneca, além de outras “paradas” na costureira que prepara novas roupas para as pequenas e no Hospital de Bonecas onde Beta, uma das mais antigas e raras delas, é consertada para se manter falante. Com esta, o longa obtém sua cena mais íntima de Dona Guiomar brincando com ela, em um momento insólito, que pode até ser desconfortável para uma parcela do público, mas que Donato contorna para não ridicularizá-la.


Ao final, quando a tal festa é consumada, com direito a um bolo com duas figuras femininas, mantém-se o segredo sobre Açucena. A princípio até é possível pensar que fosse a boneca tão querida por Guiomar, mas a dúvida paira em uma figura externa ou interna a ela que nunca é vista. Seria uma amiga imaginária que ela carrega há anos? Um alter ego ou outra personalidade desta senhora para suprir uma infância que não viveu em plenitude? Algum espírito ou entidade a ser intuída pelas falas espaçadas sobre religião e preceitos?


Esse ingrediente do mistério é o diferencial do filme, mas o temor em assumi-lo e o caminho construído para tanto acabam por minar seu potencial. No primeiro quesito, é preciso lembrar que o flerte do documentário com o cinema de gênero não é novidade por aqui, vide o curta carioca Contos da Maré (2013), de Douglas Soares, ao rememorar lendas urbanas de uma comunidade, mas o longa baiano não se entrega de tal forma e, como já dito, faz uso cinematográfico de tal aura somente em duas passagens. Por outro lado, a maneira como o dispositivo é pautado pelo roteiro de Donato e Marília Cunha para emanar essa forma híbrida dos recursos documentais e ficcionais a qual o cinema nacional se encantou particularmente ao longo da última década demonstra certa saturação quando não aplicado de modo eficiente, transmitindo uma indefinição que depõe contra seus anseios.


O resultado é que tal mistério que, minimamente, chama a atenção do público para tentar desvendar Açucena, ao mesmo tempo, não é suficientemente instigado pela direção e roteiro a fim de engajá-lo, de fato, em tão curioso caso e ambiente. Talvez, em uma revisão, seja possível enxergar no filme o antidocumentário ao qual o artista Arthur Omar sempre almejou, livre das obrigatoriedades documentais e das amarras ficcionais que o guiam para deixar seu tema ser manipulado a bel prazer pelo espectador. Mesmo assim, isso não reduz o fato da obra chegar a isso através de uma redundância contraproducente, passando a impressão de que seria melhor resolvido no formato de um média-metragem.

 

Açucena (2021)

Duração: 71 min

Direção: Isaac Donato

Roteiro: Isaac Donato e Marília Cunha (veja + no site)

Produção: Bahia

> Disponível gratuitamente no site da Mostra Tiradentes, da 20h de 23/01 (sábado) às 23h59 de 25/01/2021 (segunda)



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