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Foto do escritorNayara Reynaud

MOSTRA SP 2021 | Um universo entre dois mundos

Atualizado: 8 de nov. de 2021


Zoé Adjani em cena do filme franco-belga-argelino Charuto de Mel (Cigare Au Miel, 2020), de Kamir Aïnouz | Foto: Divulgação (Mostra Internacional de Cinema em São Paulo)

Por passear por vários locais e temas ao longo de sua narrativa, o filme Charuto de Mel (Cigare Au Miel, 2020) consegue conversar com outras obras presentes nesta 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Prolongando a discussão do documentário Regresso a Reims (Fragmentos) (2021) sobre a vinda dos imigrantes argelinos à França após a Guerra de Independência, o longa-metragem de estreia como diretora de Kamir Aïnouz – sim, ela é a irmã franco-argelina do cineasta brasileiro Karim Aïnouz – adentra a vida da geração seguinte. A protagonista que representa os descendentes que já nasceram no país europeu ou foram muito novos para lá, semelhante aos estudantes de várias origens da produção documental alemã Sr. Bachmann e Seus Alunos (2021) ou ao drama pessoal da ginasta suíça-ucraniana de Olga (2021) nessa identidade múltipla. Algo que também perpassa a questão da sexualidade feminina e sua autodescoberta, também tratada em toda a sua complexidade em títulos como o macedônio Irmandade (2021), os romenos Imaculada (2021) e Lua Azul (2021), o croata Murina (2021) e o egípcio Souad (2021).


Todo esse preâmbulo é para dizer que a produção franco-belga-argelina exibida na seção Jornada dos Autores do Festival de Veneza ainda do ano passado, compõe esse corpo de filmes da seleção do festival, muitos deles também de realizadoras estreantes, que enxergam seus personagens dentro da multiplicidade que lhes é inerente e, ao mesmo tempo, estimulada neste mundo pós-moderno e globalizado. Logo na primeira cena, Selma (Zoé Adjani, sobrinha da célebre atriz Isabelle Adjani) se apresenta aos entrevistadores de uma escola de administração e, consequentemente ao público, afirmando ser duas pessoas, quando perguntada da sua nacionalidade. A narrativa segue, então, a jornada desta garota no aprofundamento dessas duas identidades, não somente éticas e nacionais, mas também culturais e comportamentais, para tentar descobrir a mulher que existe nela.


A história se passa em 1993, ano em que eclode a Guerra Civil Argelina que tornaria aquela década em um período muito difícil para a população do país africano, mesmo no caso dos expatriados pais da moça (Amira Casar e Lyes Salem), que possuem uma vida bem confortável com ela em Paris. Frente aos seus compatriotas, especialmente neste período em que a Argélia foi tomada por grupos fundamentalistas islâmicos, o casal é bem liberal com a filha, valorizando a necessidade de estudar, mas a partir do momento em que Selma sai dessa redoma, os valores mais conservadores arraigados neles entram em choque. No caso dos adultos, o pai fica irritado com as saídas constantes e demoradas dela, enquanto a mãe insiste na importância de um bom casamento para ela, cogitando ou lhe apresentando pretendentes.


Para a jovem, o confronto é mais palpável, à medida que se interessa por Julien (Louis Peres) e se aproxima de seus colegas mais velhos da escola, sendo exposta a um ambiente progressista diametralmente oposto às tradições em que cresceu, porém ou justamente por isso, igualmente limitador. Fora o fato de sofrer preconceito por sua origem, os encontros e, particularmente, o humilhante trote escancaram uma cultura de sexualização exacerbada e, como de costume, sob um ponto de vista patriarcal. Selma é, portanto, colocada em cheque durante seu processo de autodescoberta sexual, pois enquanto para sua família e a comunidade conservadora onde habita a virgindade é vista como um bem precioso que deve ser mantido até o casamento para evitar a desonra, os amigos impõem implicitamente a sua perda o mais rápido e discretamente possível para ela não ser vista como pária perante eles e uma sociedade aparentemente mais liberal – o seria de verdade se respeitasse o contexto e o tempo de cada um neste processo.


A disparidade também continua quando suas leituras eróticas valorizam o prazer feminino ao passo que ela não consegue ter isso na realidade, com várias experiências sexuais negativas. Importante, aliás, que a pior delas venha do personagem, interpretado por Idir Chender, que representa esses dois mundos em que Selma circula, demonstrando que nenhum deles lhe oferece uma verdadeira liberdade. Parte do público, talvez, se ressinta de que a narrativa viaje entre esses dois ambientes e, posteriormente, para a Argélia sem um propósito mais claro na trama ou uma epifania mais direta da protagonista, já que esta é feita apenas de maneira metafórica na ênfase ao gozo que a direção de Kamir Aïnouz dá às cenas com comidas como o charuto de mel do título ou nas imagens finais, mas a cineasta é eficaz em traduzir para a tela os sentimentos de alguém preso nestes vácuos sociais e culturais que existem em qualquer lugar do globo.

 

Charuto de Mel (Cigare Au Miel, 2020)

Duração: 100 min | Classificação: 14 anos

Direção: Kamir Aïnouz

Roteiro: Kamir Aïnouz

Elenco: Zoé Adjani, Amira Casar, Lyes Salem, Louis Peres, Idir Chender e Axel Grandberger (veja + no site)

Produção: França, Argélia e Bélgica

Distribuição: Imovision


*Este filme foi exibido apenas nas salas de cinema de São Paulo (sessões até 02/11/2021)

Todas as sessões presenciais da Mostra seguirão os protocolos de segurança contra a Covid-19: exigência do comprovante de vacinação (o espectador pode ter recebido apenas a primeira dose, mas a segunda não pode estar em atraso) e uso obrigatório de máscara, que deverá permanecer na face durante o período de exibição do filme. Confira a ocupação de cada sala no site do evento


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