MOSTRA SP 2020 | Nas sombras de uma matrioska
Atualizado: 13 de dez. de 2020
A Rússia atual e aquela de tempos idos ganhou destaque em duas produções presentes nesta 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. O documentário norte-americano Welcome to Chechnya (2020), de David France, revela, em clima de thriller, a perseguição às pessoas LGBT+ no país, particularmente na República da Chechênia, onde a homofobia é institucionalizada pelo próprio governo local. Já no híbrido filme russo O Nariz ou a Conspiração dos Dissidentes (2020), majoritariamente uma animação operística inspirada no conto de Nikolai Gógol (1809-1852) e na ópera homônima de Dmitri Shostakovitch (1906-1975), Andrey Khrzhanovsky relembra a sina autocrática de sua nação, desde os tempos dos czares, com destaque para o regime de Josef Stalin (1878-1953), até o atual mandatário Vladimir Putin. Veja mais a seguir sobre os dois longas.
Welcome to Chechnya (Welcome to Chechnya, 2020)
Vencedor do Prêmio do Público de Melhor Documentário Internacional desta 44ª Mostra, Welcome to Chechnya também foi premiado pela audiência da seção Panorama do Festival de Berlim como o melhor do gênero, entre outros prêmios paralelos no evento. É uma boa medida do impacto do filme de David France tanto em sua faceta de denúncia da homofobia estatal na Rússia, particularmente na República da Chechênia, quanto na sua dinâmica próxima a um thriller ao acompanhar a ação de ativistas da Rede LGBT Russa e do Centro Comunitário de Moscou para Iniciativas LGBTI+ para resgatar vítimas da perseguição do governo local de Ramzan Kadyrov, com a anuência da omissão do presidente Vladimir Putin, e tentar retirá-las do país. O cineasta que teve seu primeiro longa, How to Survive a Plague (2012), indicado ao Oscar, ao mostrar a luta de grupos ativistas por uma resposta à AIDS quando ela ainda era considerada uma sentença de morte, segue com uma filmografia dedicada a destacar o ativismo na comunidade LGBT+, mas, em vez de olhar para o passado como fez em A Morte e Vida de Marsha P. Johnson (2017) também, agora relata um caso totalmente atual e urgente.
O diretor segue, então, o trabalho de David Isteev e Olga Baranova desde o telefonema com o pedido de ajuda de uma jovem chechena que tem medo que seu poderoso pai descubra sua orientação sexual e a entregue às autoridades, passando pelo abrigo secreto em Moscou em que protegem as vítimas resgatadas, até acompanhar todo o esquema para levar alguns deles para fora da Rússia, pedindo refúgio em outros países. Ao longo desses registros, o documentário traz vídeos de agressões públicas e detalha a atuação governamental para a detenção em massa de pessoas LGBT+, além das denúncias de tortura e desaparecimento, como o do famoso cantor local Zelim Bakaev. É revoltando quando o presidente da república chechena, Kadyrov, diz em entrevista, para outra produção da HBO, que “não temos nenhum gay aqui”, rindo e negando com deboche os atos de homofobia de seu governo, e completando com o pedido para levarem todos esses “sub-humanos”, mas a conivência de Putin que tem nele um homem forte para controlar uma região de históricas tensões separatistas, ajuda a espalhar a sensação de impunidade e incentivar mais ações homofóbicas por toda a nação.
Isso leva a uma preocupação maior da produção sobre a segurança das pessoas retratadas no documentário corroteirizado por Tyler H. Walk, que também foi premiado por sua edição entre os títulos do gênero no Festival de Sundance. Alguns destes personagens têm seus dramas pessoais destacados, sejam os que os levaram a pedir ajuda aos ativistas ou os que sentem por terem que se afastar repentinamente da vida pregressa e, na maioria dos casos, da família e recomeçar do zero em outro lugar, mas sem que se revelem muitos detalhes que os identifiquem, para a própria segurança deles. É utilizado, portanto, um artifício técnico muito discutido hoje em dia, o deepfake, que consiste na manipulação de rostos e sons em vídeos, que embora seja preocupante em um tempo de tantas fake news, é instrumento aqui para modificar digitalmente as feições das pessoas em fuga e preservar a sua identidade e de seus familiares. A ferramenta surge ainda como um interessante recurso narrativo quando um dos retratados decide fazer uma denúncia pública e o filme, finalmente, mostra seu verdadeiro rosto, conferindo uma liberdade a qual essas pessoas pouco têm em seu próprio país.
Welcome to Chechnya (Welcome to Chechnya, 2020)
Duração: 107 min | Classificação: 16 anos
Direção: David France
Roteiro: David France e Tyler H. Walk (veja + no site)
Produção: Estados Unidos
Distribuição: Synapse Distribution
O Nariz ou a Conspiração dos Dissidentes (Nos Ili Zagovor Netakikh, 2020)
Primeiramente, é preciso dizer o quanto é curioso que um veterano como Andrey Khrzhanovsky estivesse com seu filme na Competição Novos Diretores desta Mostra, mas sendo O Nariz ou a Conspiração dos Dissidentes apenas o segundo longa deste diretor e animador russo de tantos curtas-metragens, justifica-se essa seleção. Mais ainda, quando o realizador investe em tamanha experimentação, de dar inveja a vários jovens cineastas. A produção roteirizada ao lado de Yury Arabov é uma mistura de animação e ópera que se inspira no clássico conto de Nikolai Gógol, O Nariz (1836), e, consequentemente, na obra operística homônima do compositor Dmitri Shostakovitch, baseada no mesmo texto, para abordar, de maneira crítica, a história da Rússia no século XX, especialmente os desmandos da era de Josef Stalin – refletindo, é claro, os ecos totalitários da atualidade no país.
Ganhador do Prêmio Especial do Júri no Festival de Annecy, o mais prestigiado no ramo da animação, além de ter sua ousadia exibida em Roterdã, o filme inicia como um live action, em uma aeronave batizada com o nome de Gógol e cujos passageiros são personalidades russas “voando na mesma direção” – este é um dos momentos em que a falta de maior bagagem sobre a cultura russa se faz sentir, mas é possível entender que são figuras opositoras, talvez do governo soviético ou ao atual presidente Putin. Das telas dos assentos do avião, surge a animação, apresentando, primeiro, uma breve biografia do escritor de O Nariz, que deixou sua vila na Ucrânia e partiu para São Petersburgo seguindo por Shostacovich compondo a ópera satírica a partir do livro e, assim, mostrar a história em si do militar cujo nariz se desprende de seu corpo e ganha vida própria no Império Russo, mesclada com os desafios enfrentados pelo compositor e vários artistas que desafiavam as regras stalinistas na União Soviética. A ironia do texto gogoliano retirada do absurdo da realidade que o autor via no período do czar Nicolau I se faz pertinente à adaptação operística como retrato do regime de Stalin e sua interferência ao ditar a sua iconografia como molde para a arte nacional a partir de então, assim como a obra cinematográfica de Khrzhanovsky replica a crítica original para as reminiscências autocráticas da Rússia de hoje.
Por mais que muito se escape do espectador estrangeiro, que deve se deter a referências mais clássicas como ao filme O Encouraçado Potemkin (1926) e ao pintor Wassily Kandinsky (1866-1944) do que às outras várias citações, o público é pego pela investida do cineasta em tantas e diferentes técnicas de animação ou recursos narrativos. Personagens são apresentados como recortes de papel, outros desenhados com lápis de cor ou giz de cera, e ainda aqueles pintados à guache ou nanquim – ou algo parecido com isso. Intervenções de símbolos do mundo digital contemporâneo, como um celular e um Instagram surgem ao longo deste percurso, bem como a amplificação metalinguística do processo dos animadores sendo mostrado durante a execução da ópera. Khrzhanovsky faz uma obra sobre os dissidentes do passado e do presente, colocando-se como um deles não somente pelo aspecto político, mas também de qualquer formalismo da cinematografia atual.
O Nariz ou a Conspiração dos Dissidentes (Nos Ili Zagovor Netakikh, 2020)
Duração: 85 min
Direção: Andrey Khrzhanovsky
Roteiro: Yury Arabov e Andrey Khrzhanovsky (veja + no site)
Produção: Rússia
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