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Foto do escritorNayara Reynaud

MOSTRA SP 2020 | O pudor e ousadia britânicos

Atualizado: 21 de nov. de 2020

Dentre as produções britânicas na seleção desta 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, destaca-se o antagonismo inverso de Stardust (2020) e O Despertar de Fanny Lye (2019). Se o primeiro filme, dirigido por Gabriel Range, frustra como uma comedida cinebiografia de um artista tão inventivo e ousado quanto David Bowie, o segundo longa, comandado por Thomas Clay, surpreende pelo espírito impetuoso que escapa à austeridade formal autoimposta na estética de uma história ambientada durante os rígidos anos da ascensão puritana na Inglaterra. Leia mais sobre os dois títulos a seguir.

 

Stardust (Stardust, 2020)


O ator Johnny Flynn como David Bowie na cinebiografia Stardust (2020), filme de Gabriel Range | Foto: Divulgação (Mostra Internacional de Cinema em São Paulo)

Uma figura tão emblemática para o rock, assim como toda a história da música mundial, David Bowie não passaria incólume ao fenômeno das cinebiografias, mesmo que tenha expressado a sua vontade de que não fosse feita uma sobre si. Quatro anos depois de seu falecimento, chega Stardust, filme de Gabriel Range sobre o artista, que se detém em um momento específico de sua vida em vez de tentar abarcar toda sua biografia, como de costume. Trata-se de uma escolha prudente em muitos dos casos, ainda mais para uma produção de baixo orçamento como esta britânica, que esteve na seleção do festival de Tribeca. Mas diz respeito mais a uma limitação maior do projeto que, sem a autorização da família do cantor e compositor, não pode utilizar as suas canções.


Sendo assim, de antemão, o longa se exime de qualquer infidelidade no retrato do astro inglês ao enunciar na abertura que “o que se segue é em grande parte fictício”. O roteiro de Christopher Bell, em seu primeiro trabalho no cinema, e de Range se fixa em 1971, período em que Bowie, após o sucesso inicial de Space Oddity, dois anos antes – ainda na versão demo e não aquela de 1972, eternizada na memória dos fãs –, tem uma sequência de singles inexpressivos e, para salvar o álbum recém-lançado The Man Who Sold the World (1970) do fracasso, é proposta uma turnê nos Estados Unidos para promover o disco, que, de fato, aconteceu. O ator e músico sul-africano Johnny Flynn, visto recentemente na nova versão de Emma (2020), interpreta o David que embarca nessa viagem pela “América”, já sendo confrontado com a realidade logo no desembarque.


Sem visto para trabalhar, o artista só pode falar sobre seu trabalho e não cantá-lo, uma justificativa que ajuda o filme a driblar suas restrições e fazer o protagonista interpretar apenas covers em raras ocasiões, mas que pouco parecem versões ao estilo de Bowie. Além disso, ao ser recepcionado pelo funcionário da Mercury, Ron Oberman (Marc Maron), descobre que a gravadora investiu quase nada nessa turnê, não o enxergando como o astro que seus amigos o veem. O drama do filme reside justamente nessa angústia artística de não ter o sua obra compreendida, enquanto o próprio roqueiro também não ajuda, ao agir de maneira condescendente nas entrevistas, exaurindo até o seu promotor e companheiro de viagem, um dos poucos norte-americanos que veem o potencial de sua genialidade adormecida. Soma-se a isso o medo que o aflige de seguir certa sina da família, como revelam as lembranças da relação com o seu irmão Terry Jones (Derek Moran).


Ainda assim, a narrativa não possui uma potência propulsora para essa pretensa jornada de autoconhecimento, nem investe numa dramaturgia palpável, a exemplo da gravidez de sua esposa, Angie (Jena Malone), pouco aproveitada na trama. Mais sensível, no entanto, é a falta da ousadia que se imaginaria inerente em uma representação de alguém tão performático e desafiador de padrões quanto David Bowie. Mais conhecido pelo controverso A Morte de George W. Bush (2006), Range apresenta uma interessante sequência de abertura remetendo à figura de Major Tom, mas, depois, se entrega a uma contida direção, que não carrega o espírito do artista.


A culpa não é necessariamente da proibição de usar os sucessos bowieanos, pois Um Lindo Dia na Vizinhança (2019) está aí para provar que, mesmo não recontando a trajetória do apresentador infantil Fred Rogers e o colocando-o como coadjuvante, a essência do biografado está ali na moral da história e na estética da obra de Marielle Heller. Stardust, bem como um dedicado Johnny Flynn, entregam um retrato regular sobre um rock star em crise nos seus anos de formação, mas não espere que Bowie nem Ziggy Stardust realmente criem vida através deste filme.

 

Stardust (Stardust, 2020)

Duração: 104 min | Classificação: 14 anos

Direção: Gabriel Range

Roteiro: Christopher Bell e Gabriel Range

Elenco: Johnny Flynn, Jena Malone, Marc Maron, Derek Moran, Jimmy Star, Anthony Flanagan, Aaron Poole, Lara Heller e Roanna Cochrane (veja + no site)

Produção: Reino Unido

> Disponível no Mostra Play, das 22h de 22/10 (quinta) a 04/11/2020 (quarta), com limite de até 2.000 visualizações

+ Repescagem de 05 a 08/11/2020 na Mostra Play

 

O Despertar de Fanny Lye (Fanny Lye Deliver’d, 2019)


Cena do filme britânico O Despertar de Fanny Lye (Fanny Lye Deliver'd, 2019), de Thomas Clay | Foto: Divulgação (Mostra Internacional de Cinema em São Paulo)

Sob a neblina que cai no cenário setecentista do condado inglês de Shropshire, paira um ar anacrônico muito funcional em O Despertar de Fanny Lye. Parece um adjetivo estranho para uma obra com tanto afeto ao retrato de uma época e que, fora alguns diálogos e licenças poéticas na trilha sonora, mergulha de cabeça nos conflitos e tensões religiosas, sociais e políticas da Inglaterra de meados do século XVII. Porém, quando o cineasta Thomas Clay toma como principal referência para suas escolhas estéticas e narrativas os faroestes das décadas de 1960 e 70, a exemplo de A Vingança de um Pistoleiro (1966) e Era Uma Vez no Oeste (1968), citados pelo próprio diretor em entrevistas, e a saga de descobertas e libertação da protagonista ecoa os discursos atuais de emancipação feminina, a partir da simples inspiração em mulheres daquele período que desafiavam o status quo, tal qual a mártir Mary Dyer (1611-1660), é inegável o quanto esses fluxos temporais convergem entre si ao longo da história e em favor dela.


Essa convergência também ocorre nas influências de um filme de gênero que contém vários dentro de si. Mais notadamente o drama de época, o já mencionado faroeste e o terror rural – ou folk horror, na expressão original –, ao estilo de O Caçador de Bruxas (1968), de Michael Reeves, ainda que seja difícil defini-lo como um exemplar dessas categorias. O longa exibido no último Festival de Roterdã é ambientado em 1657, logo após a Guerra Civil Inglesa, com s terras britânicas desde então, sob o regime republicano de Cromwell, que a despeito de ter derrubado momentaneamente a monarquia inglesa, nada tinha de democrático e fez vigorar na nação o puritanismo, uma corrente protestante derivada do calvinismo que emergiu naquele período e que, sendo antes perseguida, fez com que muitos puritanos fugissem para a Nova Inglaterra e tornassem o seu pensamento as bases da colônia que se tornou dos Estados Unidos.


Nesse contexto, é apresentada Fanny Lye (Maxine Peake, de Run & Jump, de 2013), uma mulher dedicada ao rígido marido John (Charles Dance), que acredita na necessidade de manter sua esposa e o filho Arthur (Zak Adams) no caminho dos “desígnios de Deus” sob a ponta de sua impiedosa vara. No entanto, um dia, quando voltam do culto, encontram seu lar invadido por um casal estranho, os jovens Thomas Ashbury (Freddie Fox) e Rebecca Henshaw (Tanya Reynolds), que, despidos, afirmam que suas roupas bem como suas economias foram roubadas enquanto estavam na estrada. Relutante, o patriarca dá abrigo aos dois, que, mesmo disfarçando a princípio as suas ideias e comportamentos mais libertários, inspirados nos ranters ou high atteiners, uma seita radical da época que era considerada herege pela Igreja, vai modificar para sempre a vida dessa família puritana, especialmente da protagonista.


Depois de um grande hiato, o diretor de Delinquentes (2005) e Soi Cowboy (2008) retorna com seu terceiro longa, o concebendo como se fosse realizado nos anos 1970. Clay não só filma em 35mm, como abre fazendo a própria classificação indicativa da produção nos moldes daquele período e encerra com o mesmo espírito no formato antigo dos créditos. A influência setentista é sentida na trilha sonora assinada pelo próprio cineasta, com os ecos de Ennio Morricone e outros compositores contemporâneos a ele sendo mesclados aos instrumentos típicos do século XVII – o encerramento com a versão da Ode à Alegria da 9ª Sinfonia de Beethoven, chamada March to Joy, é sublime –, e externada mais fortemente em sua mise-en-scène nostálgica, embora os closes e giros de câmera que remontam a esse passado cinematográfico que tanto agrada o realizador, tenham um pouco mais de liberdade na steady cam dos planos com o jovem casal, para acentuar esse contraste de pensamentos.


Neste sentido, é interessante o quanto O Despertar de Fanny Lye coloca essa oposição nas figuras masculinas de John e Thomas, mas nenhum dos dois se torna uma saída para a personagem principal. O machismo evidente no modo de vida conservador de um também se manifesta, a sua maneira, no discurso e atitudes libertárias do outro, sendo necessária à protagonista e à narradora Rebecca se libertarem desse jugo para seguirem seus próprios caminhos, e aos dois homens, em suas visões antagônicas e suscetíveis aos erros, se atentarem a um mal maior que os cerca, personalizado na pessoa do sádico Xerife (Peter McDonald). E, apesar de Clay dizer, com toda razão, que esse embate de ideias nunca deixou de existir, a polarização mais acentuada do cenário atual deixa a obra mais pertinente aos debates contemporâneos.


Arriscaria afirmar até que o simples ato de colocar o puritanismo em pauta é um reflexo do zeigest de hoje, em que as suas bases religiosas são amplamente difundidas em meio à ascensão do conservadorismo na esfera sociopolítica de vários países, mas seu modus operandi do “vigiar, julgar e punir” continua a ser reproduzido mesmo em ambientes mais progressistas, em que o contexto laico não impede a vigilância moral, como se observa em uma dinâmica constante nas redes sociais, em que qualquer usuário está suscetível a ser a vítima, com razão ou não, da caça às bruxas do século XXI e, principalmente, de ser um perpetrador dela. Enfim, reflexões que vão além do próprio filme.

 

O Despertar de Fanny Lye (Fanny Lye Deliver'd, 2019)

Duração: 112 min | Classificação: 16 anos

Direção: Thomas Clay

Roteiro: Thomas Clay

Elenco: Maxine Peak, Charles Dance, Freddie Fox, Tanya Reynolds, Zak Adams, Peter McDonald e Perry Fitzpatrick (veja + no site)

Produção: Reino Unido e Alemanha

> Disponível no Mostra Play, de 29/10 (quinta) a 04/11/2020 (quarta), com limite de até 2.000 visualizações


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