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Foto do escritorNayara Reynaud

MOSTRA SP 2020 | A cidade para pousar

Atualizado: 8 de abr. de 2021


O ator nigeriano OC Ukeje do alto de um prédio na cidade de São Paulo, em cena do filme brasileiro Cidade Pássaro (2020), de Matias Mariani | Foto: Divulgação (Primo Filmes)

Cidade que tradicionalmente recebe o mais volumoso e diversificado fluxo migratório do Brasil, acolhendo pessoas de dentro e fora do país constantemente, São Paulo tem esta vocação evocada constantemente nas reportagens celebratórias e, por vezes, esse acolhimento analisado criticamente no cinema. Notavelmente, o clássico documentário Viramundo (1965), curta-metragem do baiano Geraldo Sarno, registrou a chegada e o processo de adaptação dos migrantes nordestinos nas periferias da metrópole, enquanto, salvo raras exceções, as comunidades de imigrantes geralmente se estabelecem na região central, mesmo lutando por melhores condições de moradia, como registrado no híbrido Era o Hotel Cambridge (2016), da paulistana Eliane Caffé. Seu conterrâneo Matias Mariani coloca a imigração na capital paulista novamente em foco no filme Cidade Pássaro (2020), mas com um interesse menor no retrato e denúncia social desses exemplos, para se debruçar mais nos conflitos de identidade, seja de olhar estritamente pessoal ou mais abrangente do ponto de vista cultural.


Exibida na seção Panorama do Festival de Berlim, a produção franco-brasileira é o primeiro filme ficcional do cineasta, que já havia codirigido os documentários Ela Sonhou que Eu Morri (2012) e A Vida Privada dos Hipopótamos (2014), ao lado de Maíra Bühler, que assina o roteiro junto de vários nomes: Chika Anadu, Francine Barbosa, Júlia Murat e Roberto Winter. A trama escrita por eles mostra dois irmãos, ainda pequenos em Nsukka, na Nigéria, em 1988, mas logo viaja até a São Paulo de 2019, junto do protagonista Amadi (o ator nigeriano OC Ukeje). Ele chega à cidade brasileira em busca do irmão Ikenna (o nigeriano-britânico Chukwudi Iwuji), o primogênito que atravessou o Oceano Atlântico para realizar grandes sonhos, mas não manda notícias há um ano, para desespero de sua mãe.


Encontrando primeiro com seu tio (Ike Barry, nigeriano radicado no Brasil), que tem uma loja de perucas na Galeria Presidente, Amadi remonta os passos fraternos por aqui e, por consequência, a identidade do irmão e a sua própria. Ele descobre que o dito professor de uma faculdade na capital paulista mentia sobre o progresso da sua vida no exterior para a família e, igualmente, sobre suas origens e até o nome aos novos colegas brasileiros, como Miro (Paulo André). Enquanto se aproxima de Emília (Indira Nascimento), a cabelereira com quem Ikenna teve uma passageira relação, o protagonista tenta decifrar o mistério que envolve não somente o seu desaparecimento, mas a busca por uma grande descoberta científica que o mesmo perseguia por trás de números escondidos nas mais variadas formas, desde algoritmos nas corridas de cavalos e videogames até a matemática da música que os unia antes em uma banda.


A proposição afrofuturista da pesquisa e dos experimentos de Ikenna, em uma mistura de mecanismos desse mundo ocidentalizado com mitologias e tradições da etnia igbo a qual pertencem, nem sempre é bem engendrada narrativamente e se sai melhor o espectador que não tenta encontrar nela uma lógica de ficção científica na tentativa dele de desafiar o tempo, a gravidade e a reencarnação, a encarando mais como um mero MacGuffin. É, portanto, um dispositivo para conduzir Amadi nessa jornada dupla pelos cenários paulistanos e em seu próprio interior, levando à tona esses laços de fraternidade, o peso das responsabilidades familiares, o desejo de independência de caminhos pré-determinados e as mentiras que se conta para si mesmo e para os outros. E no painel de imigrantes e descendentes composto pelos coadjuvantes, o filme observa na língua que separa o pai húngaro e o filho brasileiro, bem como na relação de Emília com os irmãos que lhe evoca uma ancestralidade, o processo de perda dessas origens familiares ao longo das gerações na natural vontade do imigrante de se adaptar e criar uma nova identidade no lugar onde deseja pousar, embora as raízes estejam sempre lá, nem que seja nos cabelos.


Esse destino escolhido por tantos “pássaros humanos” é tratado com uma ambiguidade ímpar na direção arquitetônica de Mariani, ressaltando simultânea beleza e desamparo nas imagens de edifícios abandonados, pichados ou no mar de prédios do horizonte de São Paulo. Na delimitação do formato de tela 4:3 e logo nos primeiros planos em que as pessoas, sejam o protagonista ou figurantes, ocupam apenas o terço inferior de um quadro que observa a pequenez delas frente as construções da paisagem urbana, há uma sensação de opressão, reforçada por outros elementos, como o trem em determinada cena. Ao mesmo tempo, é empreendido um tour contemplativo por vários pontos da metrópole, em sua maioria, bem integrado à narrativa. Cidade Pássaro capta o espírito desta cidade que obriga os seus habitantes, sejam naturais ou especialmente os recém-chegados, a tatear o chão na maior parte do tempo, mas igualmente os instiga a voar mais alto que seus arranha-céus.



=> Confira as críticas de outros filmes desta 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

 

Duração: 102 min | Classificação: 16 anos

Direção: Matias Mariani

Roteiro: Matias Mariani, Chika Anadu, Francine Barbosa, Júlia Murat, Maíra Bühler e Roberto Winter

Elenco: OC Ukeje, Indira Nascimento, Paulo André, Ike Barry e Chukwudi Iwuji (veja + no site)

Produção: Brasil e França

Distribuição: Vitrine Filmes

> Disponível no Mostra Play, das 22h de 22/10 (quinta) a 04/11/2020 (quarta), com limite de até 2.000 visualizações

+ Repescagem de 05 a 08/11/2020 na Mostra Play



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