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Foto do escritorNayara Reynaud

GRAMADO 2020 | Dia 3 – A doença da memória

Atualizado: 4 de out. de 2020


Festival de Gramado 2020: Atordoado, Eu Permaneço Atento (2020) | Blackout (2019) | Um Animal Amarelo (2020) | Dias de Invierno (2020) | Fotos: Divulgação (Festival de Gramado)

Continuando a discussão deixada no dia anterior, com Todos os Mortos (2020), a sessão de domingo (20) do 48º Festival de Cinema de Gramado seguiu tratando sobre as memórias de outrora que o país prefere esquecer, mas que ainda refletem no Brasil de agora. Começou com as lembranças da Ditadura com o curta Atordoado, Eu Permaneço Atento (2020), seguiu pelo futuro distópico semelhante ao presente de Blackout (2020) e adentrou nas divagações sobre nosso passado colonial de Um Animal Amarelo (2020), novo longa de Felipe Bragança. A terceira noite do evento, marcada por essas produções cariocas em todas as competições brasileiras, ainda discutiu questões de identidade nacional indiretamente no mexicano Dias de Invierno (2020). Confira mais sobre os filmes a seguir.

 

Imagem do jornalista Dermi Azevedo e sua família no curta-metragem Atordoado, Eu Permaneço Atento (2020), documentário de Henrique Amud e Lucas H. Rossi dos Santos | Foto: Divulgação (Festival de Gramado)

A noite de domingo da programação de Gramado iniciou com o forte relato sobre os horrores da Ditadura de Atordoado, Eu Permaneço Atento (2020), curta-metragem de Henrique Amud e Lucas H. Rossi dos Santos que traz o jornalista Dermi Azevedo contando sua trajetória, como forma de espelho para a história do Brasil ao longo das décadas. Desde a disputa latifundiária que vivenciou na infância no interior do Rio Grande do Norte, ao movimento estudantil que integrou e todas as lutas minoritárias que observou durante os “anos de chumbo”, dos quais ele e sua família foram vítimas. O momento mais impactante de seu testemunho é quando descreve como, em uma das vezes em que foi preso em 1974, seu filho Carlos Alexandre também foi levado à sede do sede do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops), em São Paulo, onde o menino de apenas um ano e oito meses foi torturado; um trauma que, segundo o pai, motivou o suicídio do rapaz em 2013 – na realidade, as marcas deixadas na família depois do episódio, provavelmente, foram mais decisivas para ele desenvolver fobia social, como revela uma entrevista sua em 2010.


Com um título tirado de um verso de Cálice de Chico Buarque, o filme carioca revela o rosto de Dermi, que hoje sofre de doença de Parkinson, em raros planos, deixando a sua voz em off como destaque de outras vozes silenciadas, além do próprio reforçar a necessidade de se estar atento aos discursos que ressurgem defendendo regimes fascistas e a tortura. Enquanto isso, a montagem utiliza imagens de arquivo para compor uma poesia imagética que, por vezes, parece de outrem. Isso porque, em determinados momentos, há uma questionável escolha por filmagens do exterior, como da II Guerra Mundial, que destoam do olhar para as dolorosas memórias brasileiras.


Adrielle Vieira em cena do curta carioca Blackout (2019) de Rossandra Leone | Foto: Divulgação (Festival de Gramado)

Da tentativa poética do documentário de remexer nessas feridas abertas no país, a programação continuou com o discurso direto, até demais, de Blackout. A obra da estreante Rossandra Leone é ambientada no Rio de Janeiro de 2048, mas não há, de fato, uma exploração de como seria esse futuro distópico, quase tão autoritário e vigilante quanto o atual, ou, em contrapartida, a utopia afrofuturista que não consegue alçar voos nesta história. Nem mesmo nos expositivos diálogos travados pela protagonista, a hacker Luana (Adrielle Vieira), e seu algoz, um agente de segurança do governo (Marcéu Pierrotti) – aliás, um mergulho maior no gênero, tendo igualmente hackers combatendo um regime ditatorial no país, é observado no curta baiano Ada (2019), de Rafaela Uchoa.


O título carioca, por sua vez, centra-se no embate entre os dois personagens, fazendo referência a um clássico do formato, o gaúcho O Dia em que Dorival Encarou a Guarda (1986). No entanto, destoa do curta de Jorge Furtado e José Pedro Goulart, vencedor de quatro Kikitos em Gramado, no que diz respeito ao desenvolvimento de seu texto e de personagens esboçados para atender somente a demanda de seu discurso que, embora levante a importância da discussão do racismo no país, fica preso no lugar comum e superficialidade unidimensional do debate que se vê nas redes sociais. Com o desejo febril da juventude em quebrar o sistema por dentro, tanto a protagonista quanto o filme não conseguem utilizar o que têm em mãos, os conhecimentos de computação no primeiro caso e o cinema no outro, para estabelecer as bases da revolução que anuncia.

 

Competição de Curtas-Metragens Brasileiros

Duração: 15 min

Direção: Henrique Amud e Lucas H. Rossi dos Santos

Roteiro: Henrique Amud e Lucas H. Rossi dos Santos

Elenco: Dermi Azevedo (veja + no site)

Produção: Brasil (Rio de Janeiro)

Blackout (2019)

Duração: 18 min 51 s

Direção: Rossandra Leone

Roteiro: Rossandra Leone e Pedro Gomes

Elenco: Adrielle Vieira, Marcéu Pierrotti, Daniel Varga, Marcelos Dias, Joabe Santos, Ana Paula Patrocínio e Danrley Ferreira (veja + no site)

Produção: Brasil (Rio de Janeiro)

 

Cena do filme brasileiro Um Animal Amarelo (2020), de Felipe Bragança | Foto: Divulgação (Festival de Gramado)

No cinema de Felipe Bragança, seja em projetos solo ou em parceria com outro realizador, o cruzamento entre passado e presente do Brasil é recorrente. Trata-se, geralmente, de um exercício mais fabular do que fantástico no resgate, mais profundo do que o comum, de eventos históricos fundadores da nação. Exemplos são a relação colonial com Portugal no curta Fernando que Ganhou um Pássaro do Mar (2013), em um momento em que os países se encontravam em fases diametralmente opostas as de agora, ou da Guerra do Paraguai no longa anterior Não Devore Meu Coração (2017).


A memória nacional é novamente revirada, sob o estigma de uma doença dolorosa, mas necessária, em sua nova obra Um Animal Amarelo. Exibida no Festival de Roterdã e previsto na programação do Olhar de Cinema, a produção chega a Gramado para dar sequência ao debate da herança colonial, especialmente escravocrata, na formação do povo brasileiro, abordado também por Todos os Mortos (2020). Iniciando com uma citação do antropólogo Darcy Ribeiro, a reflexão sobre a falta de identidade brasileira, ou de uma identidade a qual não se quer assumir, é traçada através da trajetória tragicômica e delirante de um cineasta chamado Fernando (Higor Campagnaro) recriando em forma de aventura e filme a história de seu ancestral por Moçambique, Portugal e Brasil.


Dividida em capítulos intitulados, a narrativa vai de um prólogo em 1984, que apresenta a figura já falida de seu avô (Herson Capri), que teve escravos moçambicanos, décadas depois da Abolição, e ainda mantinha o desvairado sonho da riqueza que um dia desfruto, bem como seu amuleto, um osso ligado à figura mítica do tal Animal Amarelo. Pulando para o presente, está seu neto, um cineasta que não obtém o financiamento para seu filme, no qual deseja contar sobre esse espólio familiar e acaba, ele mesmo partindo como um “pirata pálido” em busca de riquezas em Moçambique e se envolvendo em um esquema que o leva a Lisboa. Personagens vêm e vão como miragens na trama – a narradora e chefe moçambicana do protagonista, Catarina (Isabél Zuaa), e a paixão portuguesa dele, Susana (Catarina Wallenstein), conseguem se destacar –, assim como outras referências reais, porém, lendárias da cultura luso-brasileira, a exemplo de Carmen Miranda e do Sebastianismo.


A dedicatória final a Joaquim Pedro de Andrade é só o atestado de um filme que emula a aura de Macunaíma (1969) constantemente, sem demonstrar um pouco da perspicácia da obra-prima do cineasta no retrato plural da constituição do povo brasileiro. Há também elementos referenciais de Terra Estrangeira (1995), de Walter Salles e Daniela Thomas, seja na imagem de abertura do navio naufragado ou no contrabando de pedras preciosas na narrativa. Contudo, na viagem transatlântica à história e ao cinema nacionais, o longa se afasta mais do que o esperado da realidade atual, ainda que ela seja sempre motivo de crítica desses reflexos passados.


Um Animal Amarelo é um filme declaradamente autocentrado, desde a metalinguagem na escolha de seu protagonista aos seus zooms, e isso caracteriza o seu céu e seu inferno. Honesto escudo para a autocrítica que Bragança faz a si mesmo e ao cinema que se encantou pela utopia de um país que se revelou ainda como reprodução da colônia de outrora, a abordagem é igualmente um lamento ensimesmado que não quer dar conta da complexidade do brasileiro de agora e de sua triste fábula real.

 

Duração: 115 min

Direção: Felipe Bragança

Roteiro: Felipe Bragança, com colaboração de João Nicolau

Elenco: Higor Campagnaro, Isabel Zuaa, Tainá Medina, Catarina Wallenstein, Matamba Joaquim, Lucília Raimundo, Diogo Dória, Adriano Luz, Herson Capri, Thiago Lacerda, Sophie Charlote, Márcio Vito, Matheus Macena e Digão Ribeiro (veja + no site)

Produção: Brasil (Rio de Janeiro)

Distribuição: Olhar Distribuição

 

Miguel Narro em cena do filme mexicano Dias de Invierno (2020), de Jaiziel Hernández | Foto: Divulgação (Festival de Gramado)

Logo no início do filme mexicano Dias de Invierno (2020), primeiro longa de Jaiziel Hernández, o jovem protagonista Nestor (Miguel Narro) reencontra uma antiga prova e se prende na questão que o fez reprovar na Olimpíada de Matemática. Essa descoberta serve, primeiro, como artifício narrativo para sua apresentação, ao introduzir através dos diálogos o fato de que ele tinha um futuro promissor, mas, de certo modo, tem uma tendência a não dar prosseguimento em seus projetos. Contudo, o problema matemático sobre cachorros e lobos presos em um espaço delimitado é também uma metáfora para o estado de estagnação em que o rapaz vive, em meio a um dilema pessoal.


Com o desejo de ir para os Estados Unidos, assim como seus irmãos que já fizeram sua vida no país vizinho, o caçula é impelido pelo dever familiar, pois é o único que ainda mora com a mãe (Leticia Huijara), que acabara de ser demitida. Trabalhando como recepcionista e atendente noturno em um hotel beira de estrada, Nestor até tenta se divertir com a namorada (Saidde García Ulloa), mas não há muito que fazer em Saltillo, uma cidade industrial no norte do México. Hernández reforça a impressão de desolação, com planos que revelam as construções comerciais abandonadas e ampliam a vastidão de terrenos vazios, na fotografia de Juan Pablo Ramírez, de Chicuarotes (2019).


A sensação de angústia desses quadros é contraposta por algumas cenas em slow motion, como se a intenção fosse estender esses breves momentos de diversão, em um exercício de direção que mescla um naturalismo do cinema mexicano com muito dos filmes indies norte-americanos, como denota a trilha sonora folk ou o próprio cenário do hotel. Contudo, não há nenhuma ode à “América”, como demonstra o ânimo do hóspede norte-americano (Peter Theis), também em crise – note, aliás, que o mesmo mora no Michigan, um estado afetado há mais de uma década por uma grave crise econômica, justamente pela decadência de seu polo industrial. A obra revela igual desesperança sobre seu próprio país ao se manter aprisionado a um protagonista a qual o espectador não consegue se identificar totalmente, enquanto não concilia bem a sua trama com as outras pontas mais interessantes desta narrativa: a sua namorada mais resoluta sobre o futuro que deseja e sua mãe, que não necessariamente precisa de cuidados, mas sim da independência para viver por si só.

 

Competição de Longas-Metragens Estrangeiros

Duração: 90 min

Direção: Jaiziel Hernández

Roteiro: Jaiziel Hernández Máynez e Oriana Jimenez Castro

Elenco: Miguel Narro, Leticia Huijara, Saidde García Ulloa e Cesar Ramones (veja + no site)

Produção: México

Distribuição: Pirotecnia Films (México)



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