É TUDO VERDADE 2021 | Dia 7 – Quando a alta traição vem do próprio Estado
Atualizado: 6 de mai. de 2021
A 26ª edição do festival É Tudo Verdade chega a uma semana de festival e o seu sétimo dia de programação destaca crimes de alta traição não contra, mas do próprio Estado, quando este ultrapassa seus limites. No caso de MLK/FBI (2020), documentário de Sam Pollard que está na competição internacional, ela vem no registro de como o serviço de vigilância norte-americano vasculhou toda a vida de Martin Luther King por causa da sua força de mobilização popular na luta pelos direitos civis no país. Na seleção de longas nacionais, Os Arrependidos (2021), de Ricardo Calil e Armando Antenore, traz a palavra de alguns dos guerrilheiros que renegaram a luta armada e elogiaram o regime militar, sendo vistos como traidores por seus antigos companheiros, quando foram instrumentos da repressão da Ditadura. Saiba mais sobre os filmes a seguir:
MLK/FBI (MLK/FBI, 2020)
Já de antemão, MLK/FBI (2020) era um dos títulos mais badalados na seleção deste ETV 2021. Tendo estreado no Festival de Toronto e vencido o prêmio de Melhor Documentário de Arquivo no Critics Choice Documentary Awards, o documentário de Sam Pollard estampa o selo de pré-finalista do Oscar deste ano – mesmo que a indicação que o diretor já conseguiu uma vez como produtor de Quatro Meninas (1997), em uma de suas várias parcerias com Spike Lee, de quem foi montador de vários de seus filmes. Mais do que pelas qualidades narrativas, a obra ganhou atenção pela pertinência de seu tema, a vigilância exagerada e intimidatória do FBI, o Departamento Federal de Investigação dos Estados Unidos, sobre o reverendo Martin Luther King, justamente em um momento no qual o país foi tomado pelas manifestações antirracistas do Black Lives Matter em decorrência da violência policial sistemática.
Na realidade, por mais que a produção afirme ser a primeira a tratar sobre o assunto, quem já assistiu ao telefilme Até o Fim (2016), em que Jay Roach retrata os embates nos bastidores do início do mandato de Lyndon B. Johnson, pode ter uma amostra da espionagem ostensiva do departamento chefiado pelo questionável J. Edgar Hoover sobre o ativista que lutava pelos direitos civis igualitários na nação, a partir da vida sexual extraconjugal do reverendo. A questão, no entanto, é detalhada aqui quanto à extensão da ação, iniciada desde 1956, quando apoiou o boicote aos ônibus em Montgomery a fim de encerrar a segregação racial no transporte público, e intensificada dois dias depois da famosa marcha a Washington, em 1963, ainda sob o governo de John Kennedy, e após seu discurso contra a Guerra no Vietnã, em 1967, já sendo vencedor do prêmio Nobel da paz e com LBJ no poder. Aliás, é sempre bom lembrar que esse recrudescimento da vigilância se deu sob o aval de presidentes e políticos democratas, demonstrando como o racismo institucional sobrepõe discursos partidários.
Diretor de Mr. Soul! (2018) e Sammy Davis, Jr.: I've Gotta Be Me (2017), Pollard usa sua experiência em edição para dispor de inúmeras filmagens da época para ilustrar as falas em off dos especialistas e personagens coadjuvantes desta trama, sejam os colegas de MLK no movimento ou ex-agentes da era Hoover, que durou de 1924 a 1972. Por sinal, a abertura ao estilo retrô de série de espionagem até anuncia uma narrativa mais calcada no gênero, que a contenção do documentário nunca entrega. O filme se eleva mesmo quando vêm à tona as discussões sobre imagem midiática, seja nos trechos de Espiões (1948), Aventura Perigosa (1952) e A História do FBI (1959) mostrando a construção de um discurso e figura do FBI de luta contra o crime e o comunismo ou no debate acerca da hiperssexualização do homem negro, e revisionismo histórico, na dúvida se a revelação do conteúdo das fitas da investigação, em 2027, fariam as falhas do homem macularem a figura histórica que Martin Luther King representa.
MLK/FBI (MLK/FBI, 2020)
Duração: 104 min | Classificação: 18 anos
Direção: Sam Pollard
Produção: Dinamarca, Estados Unidos e Noruega
Áudio e Legendas: inglês | legendas em português
> Sessão – 15/04/2021 (quinta), às 19h00
Disponível no Looke, com limite de até 1.000 visualizações ou prazo de 24 horas; caso não alcancem o limite, retornam no dia seguinte às 12h00 e ficam até as 22h ou o limite de visionamentos estabelecido
Os Arrependidos (2021)
Assim como seus personagens, o documentário Os Arrependidos é capaz de provocar reações extremas e antagônicas no público, que vive um período tão polarizado quanto o retratado – e, dadas as circunstâncias, é totalmente compreensível tal fenômeno em ambas as ocasiões. O longa realizado por Ricardo Calil, diretor de Uma Noite em 67 (2010), e pelo jornalista Armando Antenore, toma como ponto de partida o caso de cinco jovens guerrilheiros que, após serem presos, vão à imprensa criticar a luta armada e elogiar o regime militar, em maio de 1970. Depois disso, a Ditadura acaba adotando a prática de forçar o “arrependimento” através da tortura física e psicológica, enquanto aqueles que o faziam tanto eram vistos como traidores por seus antigos companheiros quanto continuavam taxados como terroristas subversivos para a população.
O filme, então, entrevista alguns dos primeiros “arrependidos” e também dos que foram coagidos posteriormente. A verve jornalística de Antenore se manifesta na posição do documentário de oferecer a palavra para os envolvidos e deixa-los dar suas versões dos fatos e de suas ações. Seus relatos mostram como a adrenalina da juventude e/ou o envolvimento desde a mais tenra idade com os movimentos estudantis e sindicais levaram alguns daqueles rapazes a se engajarem na luta revolucionária, sem de fato estarem preparados para isso, e a constante tortura sofrida quando foram presos, embora haja um deles que negue que tenha sido tanto assim e que, não obstante, é um dos que até hoje ainda vê o governo Médici com bons olhos, enquanto os outros ponderam sobre as circunstâncias que os obrigaram a dizerem tais elogios na mídia, conivente com a repressão sofrida por eles.
Apesar do dispositivo simples, a vocação cinematográfica de Calil, por sua vez, surge na maneira como a montagem pontua esses depoimentos com a propaganda política realizada pelo regime na época, não só exaltando símbolos nacionais como causando confusão com sua defesa do nacionalismo – até porque ser patriota é apenas ter amor à pátria e diversos elementos que a representam, enquanto o nacionalista toma isso como justificativa para menosprezar ou dominar as outras nações e, por consequência, aqueles que se opõem aos seus ideais dentro da própria população. Além disso, a posição dos realizadores é sublinha na progressão cronológica da narrativa, que, por fim, apresenta como o suicídio de Massafumi Yoshinaga (1949-1976) foi decorrente da pressão sofrida para renegar a militância e posterior condenação moral de seus antes parceiros e no depoimento da viúva de um preso político, cuja carta ao Dom Paulo Evaristo Arns foi responsável por revelar à opinião pública internacional os métodos usados pelos militares para forçar tal “arrependimento”, reforçando o tratamento desumano aos presos comuns continuou mesmo no período democrático. Um olhar mais ponderado sobre o filme é capaz de enxergar nele que é possível fazer a tal “autocrítica” pedida à esquerda ao questionar, se não do ponto de vista moral, mas estratégico, os reais resultados da luta armada, sem deixar de condenar os absurdos praticados pela Ditadura em nome de um Brasil que nunca poderia ser gigante pela própria natureza oprimindo o seu povo.
Os Arrependidos (2021)
Duração: 83 min | Classificação: Livre
Direção: Ricardo Calil e Armando Antenore
Produção: Brasil (São Paulo/SP)
Áudio e Legendas: português | legendas em português
> Sessão – 15/04/2021 (quinta), às 21h00
> Reprise – 16/04/2021 (sexta), às 15h00
Disponível no Looke, com uma hora de tolerância para o início da sessão ou até atingir o limite de 2.000 visualizações
> Debate – 16/04/2021 (sexta), às 17h00
Disponível no YouTube do ETV
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