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Foto do escritorNayara Reynaud

É TUDO VERDADE 2021 | Dia 3 – Guerra Fria em primeiro plano


A programação deste domingo (11) no 26º festival É Tudo Verdade reúne destaques que abordam, direta ou indiretamente, os meandros e efeitos da Guerra Fria em diferentes partes da disputa geopolítica que ditou os rumos da segunda metade do século XX. Dentro dos programas especiais, o documentário Evento de TV (2020), do diretor australiano Jeff Daniels, relembra as dificuldades para a produção e exibição do telefilme O Dia Seguinte (1983), que faria população dos Estados Unidos discutir as terríveis consequências de uma possível guerra nuclear. Do outro lado, a competição internacional apresenta Gorbachev. Céu (2020), com o cineasta Vitaly Mansky adentrando a intimidade e tentando descobrir o que pensa Mikhail Gorbatchov, o último líder da União Soviética. Na mostra “O Estado das Coisas”, que se inicia hoje, o longa nacional Tio Tommy – O Homem que Fundou a Newsweek (2021), de Loli Menezes, tenta recompor a vida de Thomas J. C. Martyn, o fundador da revista norte-americana Newsweek, desde quando o inglês foi piloto durante a I Guerra Mundial até o final da vida no Brasil, onde veio parar para se engajar na política internacional ianque de combate À influência do comunismo na América do Sul. Aliás, um resultado disso aqui foi a Ditadura, período que não poderia deixar de ser citado pelo compositor Paulo César Pinheiro ao recontar sua carreira no filme de Cleisson Vidal e Andrea Prates presente na competição brasileira, Paulo César Pinheiro – Letra e Alma (2021). Confira mais a seguir sobre esses títulos do terceiro dia de evento:

 

Evento de TV (Television Event, 2020)


Cena do telefilme norte-americano O Dia Seguinte (1983), de Nicholas Meyer, que é o objeto do documentário Evento de TV (2020), do australiano Jeff Daniels | Foto: Divulgação (É Tudo Verdade)

Imagens de uma reportagem sobre o “evento especial” O Dia Seguinte, na qual se acompanha as reações das pessoas assistindo em suas casas àquele que foi e, até hoje, se mantém como o telefilme de maior audiência na história da televisão norte-americana, abrem Evento de TV. O longa-metragem está longe de reverberar tanto quanto o drama de uma possível guerra nuclear, exibido pela ABC em 1983, no auge da Guerra Fria, ou mesmo ser tão ambicioso quanto à produção de Robert Papazian, dirigida por Nicholas “Nick” Meyer e roteirizada por Edward Hume. O formato convencional de documentário de bastidores a partir de entrevistas com pessoas envolvidas na polêmica atração, no entanto, não impede o cineasta australiano Jeff Daniels de explorar bem tanto o panorama metalinguístico do seu objeto de interesse quanto à questão geopolítica que o rodeia.


O espectador contemporâneo logo é contextualizado em relação à grade da emissora no início dos anos 1980, que estreava um “filme de TV” original semanalmente, mas nada tão apocalíptico assim – muito menos como Hiroshima Mon Amour (1959), de Alain Resnais, que foi uma referência para a equipe. E também à disputa política que se intensificava entre os Estados Unidos, sob o comando do presidente Ronald Reagan que defendia a “paz pela força”, e a União Soviética, cujas ações desastrosas como o ataque equivocado a um avião sul-coreano de passageiros, tornando a possibilidade de uma guerra entre as duas maiores potências mundiais e donas de um gigantesco arsenal atômico se tornando cada vez mais próxima e mobilizando propagandas e protestos desarmamentistas. Em uma obra que aborda um produto de mídia que provou o poder das imagens para transmitir a mensagem desejada, aquelas das crianças em uma simulação de evacuação nuclear na escola são emblemáticas para entender a paranoia constante, e não sem propósito, daquele período, assim como a versão de Shout nos créditos finais relembra o tom de protesto da canção oitentista da banda inglesa Tears for Fears.


Pela cinefilia, é interessante acompanhar os detalhes da produção que mobilizou as cidades de Lawrence e Kansas City – o Kansas, assim como outros estados do Meio Oeste norte-americano, abriga vários depósitos de mísseis sob o solo das fazendas da região –, particularmente pelo embate da visão autoral do diretor com os executivos da ABC Estes também sofriam a pressão de anunciantes, associações de classe, parte do público e do governo que temiam e/ou criticavam o produto antes mesmo de ir ao ar. Contudo, é como um estudo de mídia e comunicação que a obra se enriquece, especialmente hoje em dia, em que as informações não conseguem alcançar parte do público, que prefere ignorar a ameaça da pandemia.


Tal qual um dos personagens de O Dia Seguinte, a população dos Estados Unidos naquela época tentava seguir a sua rotina mesmo com o risco iminente, sendo necessário o choque de realidade, no caso, através da ficção, para que a mensagem atingisse o espectador e o levasse à reflexão, que foi estendida com a interessante estratégia da emissora de exibir um debate na sequência. O tema foi discutido à exaustão pela opinião pública, fazendo Reagan, que foi sensibilizado pelo filme, refrear a corrida nuclear e, aos poucos, apaziguar os ânimos com a URSS, onde a produção também foi transmitida anos depois. É um caso que comprova que a televisão, tão desprestigiada pelos profissionais do audiovisual de lá naquele período e ainda menosprezada por uma nova geração daqui que erroneamente a vê como um modelo midiático ultrapassado, tem o poder de congregar uma grande massa de pessoas para apreciar e repercutir um conteúdo ao mesmo tempo.

 

Evento de TV (Television Event, 2020)

Duração: 91 min | Classificação: 12 anos

Direção: Jeff Daniels

Produção: Austrália e Estados Unidos

Áudio e Legendas: inglês | legendas em português

> Sessão – 11/04/2021 (domingo), às 11h00

Disponível no Looke por 24 horas ou até o limite de 2.000 visualizações

 

Gorbachev.Céu (Gorbachev.Heaven, 2020)


O ex-líder da União Soviética Mikhail Sergeevitch Gorbachev em sua casa, em cena do documentário tcheco-letão Gorbachev.Céu (Gorbachev.Heaven, 2020), do cineasta russo Vitaly Mansky | Foto: Divulgação

O gato em meio a uma sala vazia, um velho senhor cochilando ao assistir um vídeo de uma homenagem aos seus feitos de outrora. É assim que começa Gorbachev.Céu, novo documentário de Vitaly Mansky que tenta estabelecer uma conversa com Mikhail Gorbachev, antigo líder do Partido Comunista e, portanto, líder da União Soviética de 1985 a 1991, justamente seu período final. No entanto, o homem criticado por muitos dos seus compatriotas e visto com bons olhos por inúmeros estrangeiros por causa da sua política de transparência e reestruturação, respectivamente, a glasnost e a perestroika, que ajudou a abaixar a Cortina de Ferro que dividia entre países capitalistas e comunistas por décadas de Guerra Fria, está despido do peso de sua figura histórica, seja pela natureza do tempo que torna tudo e todo obsoletos ou pela ação de forças políticas que desejam isso.


Com a saúde deteriorada, Mikhail Sergeevitch, como é chamado pelos funcionários e amigos, vagueia pela casa com um andador e ajuda de seu fiel assistente, desce pelo elevador instalado no apartamento que lhe foi destinado quando renunciou ao governo. Mas além da questão física e do baque emocional da perda de sua amada esposa Raissa há mais de 20 anos, pesa sobre seus ombros certo cansaço em argumentar sobre suas medidas presidenciais e, igualmente, um ressentimento por não ter sido ouvido e reconhecido pela sua nação. Não são sentimentos e atitudes contraditórias quando se trata da psique humana, porém, resultam em contradições no discurso que são constantemente questionadas pelo cineasta russo, radicado na Letônia, país coprodutor do longa, junto da República Tcheca.


Quem assistiu ao trabalho anterior de Mansky, Testemunhas de Putin (2018), exibido pelo mesmo festival em 2019, sabe que o documentarista trabalhou na primeira campanha presidencial de Vladimir Putin, se tornando, posteriormente, um crítico e dissidente do homem que ainda lidera a Rússia com mãos de ferro. Desde a primeira conversa, o diretor busca respostas de seu entrevistado sobre sua condição política e o fato de sua opinião não ser mais divulgada pela mídia, deixando clara a sua própria visão de que o antigo líder não tem mais liberdade com as imagens de câmeras e muros. Gorbachev, no entanto, não quer de fato, responde-las.


O entrevistado tangencia sobre o fato de ver Lenin como herói e Stalin como autoritário, solta farpas sobre Putin e uma possível traição de Boris Yeltsin, que assumiu a presidência russa após sua renúncia e consequente dissolução da URSS, mas se esquiva de qualquer fala mais contundente sobre eles além de acusar o último de redigir uma constituição autocrática à sua imagem e semelhança. Nos encontros posteriores em sua reduzida fundação, Mikhail até provoca Vitaly, deixando o embate verbal cada vez mais quente, enquanto dita sua narrativa depois aos dramaturgos interessados em fazer uma peça sobre ele e a mulher. “O tempo está escorrendo, não pingando”, diz o personagem, que embora se feche às perguntas, não deixa de revelar a si mesmo nessa dinâmica registrada por Gorbachev.Céu.

 

Gorbachev.Céu (Gorbachev.Heaven, 2020)

Duração: 100 min | Classificação: Livre

Direção: Vitaly Mansky

Produção: Letônia e República Tcheca

Áudio e Legendas: russo | legendas em português

> Sessão – 11/04/2021 (domingo), às 19h00

Disponível no Looke, com limite de até 1.000 visualizações ou prazo de 24 horas; caso não alcancem o limite, retornam no dia seguinte às 12h00 e ficam até as 22h ou o limite de visionamentos estabelecido

 

Foto do túmulo do jornalista e empresário Thomas J. C. Martyn e sua esposa em cena do documentário nacional  Tio Tommy – O Homem que Fundou a Newsweek (2021), da cineasta catarinense Loli Menezes | Foto: Divulgação (É Tudo Verdade)

Continuando com a leva de homens cujos feitos foram soterrados pelo tempo ou por interesses escusos – neste caso, por vezes, até do próprio –, o documentário Tio Tommy – O Homem que Fundou a Newsweek busca recontar a trajetória sinuosa do jornalista e empresário Thomas J. C. Martyn. O primeiro longa da cineasta catarinense Loli Menezes, que já havia realizado o média-metragem documental Túlio Piva – Pandeiro de Prata (2015) e o curta ficcional Selma Depois da Chuva (2019), parte da curiosidade natural de um sobrinho-neto e também de qualquer um que descubra que o fundador da famosa revista semanal norte-americana Newsweek viveu seus últimos anos e foi enterrado em Agrolândia, cidade do interior de Santa Catarina, que era ainda menor quando ele chegou na terra da família de sua terceira e última esposa Irma, mas a qual chamava de Mary, na década de 1960. O que levou este homem para lá é a primeira das várias perguntas que são levantadas enquanto a narrativa vai resgatando outros pontos de sua vida.


O inglês que foi piloto durante a I Guerra Mundial e se acidentou, pendendo uma perna, viaja para os Estados Unidos e se transforma em jornalista, trabalhando na revista Time e no jornal The New York Times, até fundar seu próprio veículo e concorrer com a primeira empresa para qual escreveu. Mas também vê-lo parar nas mãos de outras pessoas, quando de uma fusão que o tirou do comando da Newsweek. Inicia, então, uma nova empreitada, deixando para trás a segunda esposa e os filhos e embarcando na América do Sul, primeiro na Argentina e depois no Brasil, com interesses obscuros, indicando que, talvez, ele possa ter sido um agente de informação para os norte-americanos na campanha contra a instauração do comunismo no continente, em plena Guerra Fria, tendo contato com os militares brasileiros que instauraram a Ditadura no país com o mesmo intuito.


Ao mesmo tempo em que o documentário biográfico se beneficia deste mistério, encontra nele seu maior empecilho. Sem maiores ambições narrativas ou estéticas, a produção se fixa nos depoimentos vagos dos parentes de Mary e amigos que o conheceram em Agrolândia, nas recordações dos netos que ficaram nos EUA e entrevistas de especialistas dos dois países e da Inglaterra que se debruçam nas lacunas da biografia de Martyn, que, para ajudar, tinha o costume de colocar informações diferentes a cada documento que assinava. Tal qual a vida do “Tio Tommy”, como o chamavam na família brasileira, o filme carrega seu caráter inusitado, porém, não consegue transcender isso e transformar em algo palpável a dizer sobre si.

 

Duração: 94 min | Classificação: 14 anos

Direção: Loli Menezes

Produção: Brasil (Florianópolis/SC)

Áudio e Legendas: português e inglês | legendas em português, inglês e espanhol

> Sessão – 11 a 18/04/2021 (domingo a domingo)

Disponível no Sesc Digital, com limite de até 2.000 visualizações ou prazo de 24 horas; caso não alcancem o limite, retornam no dia seguinte às 12h00 e ficam até as 22h ou o limite de visionamentos estabelecido

 

Paulo César Pinheiro – Letra e Alma (2021)


O compositor Paulo César Pinheiro em cena do documentário brasileiro Paulo César Pinheiro – Letra e Alma (2021), de Cleisson Vidal e Andrea Prates | Foto: Divulgação (É Tudo Verdade)

Constante em outras edições do É Tudo Verdade, o documentário musical não foi esquecido na competição nacional neste ano, com dois títulos na seleção. Mas se a musicalidade viaja em Dois Tempos (2021), que será exibido amanhã (11), ela se acomoda em Paulo César Pinheiro – Letra e Alma, tal qual o ímpeto cinematográfico do retrato do prolífico compositor carioca Paulo César Pinheiro. O longa da dupla Cleisson Vidal e Andrea Prates, responsável por Dino Cazzola: Uma Filmografia de Brasília (2012), é um exercício documental de um simplismo que contrasta justamente com a maestria que apenas parece simples de seu personagem.


Após a introdução com o próprio declamando seus versos, após os créditos entra o constante e solitário plano em preto e branco do músico sentado na poltrona de sua casa, contando seus passos desde a infância, que o levaram para o caminho do samba, do qual se tornaria um dos grandes poetas. Apoiado pelas imagens de arquivo que a montagem seleciona, Pinheiro relembra as parcerias que fez ao longo da carreira com grandes compositores e intérpretes do gênero e da música popular brasileira, como Baden Powell, Pixinguinha, Elis Regina e Clara Nunes. Com esta, Paulo César se casou, mas a produção e ele passam rapidamente sobre o assunto, mal falando sobre os sentimentos que ficaram após a traumática morte da cantora e, de maneira breve, comentando acerca de sua atual esposa Luciana Rabelo e seus filhos, além de adendos sobre a censura ditatorial em suas letras e a religiosidade e espiritualidade presente nelas.


Trata-se, portanto, de um perfil de Paulo César Pinheiro por Paulo César Pinheiro, o que não necessariamente seria ruim. Ainda que a escolha pese sempre para o egocentrismo e imparcialidade do relato, há exemplos como o de Boa Noite (2019), selecionado no ETV do ano passado, em que a diretora Clarice Saliby se vale do ponto de vista único do jornalista Cid Moreira, mas usa a própria arte e insistência do apresentador em tomar conta da narrativa sobre si para compor um interessante retrato dele. Aqui, a coloquialidade é uma desculpa para o básico dispositivo empregado por Vidal e Prates, sem que o filme consiga, de fato, fazer o espectador se sentir íntimo do artista, que só mostra sua alma no momento em que toca ao lado de sua família; mas aí já é tarde e o documentário acaba.

 

Competição Brasileira de Longas e Médias-Metragens

Paulo César Pinheiro – Letra e Alma (2021)

Duração: 85 min | Classificação: Livre

Direção: Cleisson Vidal e Andrea Prates

Produção: Brasil (São Paulo/SP)

Áudio e Legendas: português

> Sessão – 11/04/2021 (domingo), às 21h00

> Reprise – 12/04/2021 (segunda), às 15h00

Disponível no Looke, com uma hora de tolerância para o início da sessão ou até atingir o limite de 2.000 visualizações

> Debate – 12/04/2021 (segunda), às 17h00

Disponível no YouTube do ETV


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