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Foto do escritorNayara Reynaud

É TUDO VERDADE 2020 | Prazo de validade da luta

Atualizado: 7 de nov. de 2020


Imagem do documentário Libelu – Abaixo a Ditadura (2020), de Diógenes Muniz | Foto: Divulgação (Festival É Tudo Verdade / Créditos: Acervo O Trabalho)

Em momentos nos quais a repetição de ciclos históricos se torna mais evidente, os exercícios de análise que resgatam períodos da História para tentar compreender a atualidade se tornam cada vez mais comuns, inclusive no cinema e especialmente no gênero documental. Tal movimento, naturalmente, pode ser visto em vários títulos da competição de longas brasileiros do festival É Tudo Verdade 2020, mas Libelu – Abaixo a Ditadura (2020) é, dentre estes, aquele que, de fato, propõe um choque entre passado e presente. Em sua estreia, o jovem cineasta Diógenes Muniz faz isso não de forma direta, mas implícita na simples disposição de colocar os agentes transformadores ou meros observadores de outrora rememorando os episódios passados sob a ótica do agora e tudo aquilo que se transformaram ao longo de cerca de quatro décadas.


O objeto de estudo do filme é a Liberdade e Luta, tendência política surgida entre os movimentos estudantis dos anos 1970, que foi criada como um braço estudantil do movimento trotskista par formar uma chapa que disputaria as primeiras eleições do Diretório Central dos Estudantes da Universidade de São Paulo e que inspirou inúmeras outras pelo país ainda governado pelos militares. O diretor traz, portanto, seus antigos integrantes para o belo, mas ao mesmo tempo distante por conta de sua disposição, cenário da FAU, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, a fim de recontar a trajetória da Libelu, como ficaria conhecida. Sua formação, as disputas internas no seio universitário, a reconstrução da União Nacional dos Estudantes (UNE), a trágica invasão da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), em 1977, mesmo ano em que têm um papel importante fora do campus, sendo a primeira a bradar o grito de “Abaixo a Ditadura” durante as passeatas dos estudantes, a atuação expressiva até a eleição e a Anistia em 1979, até ser encerrada em 1982.


As entrevistas deles, realizadas em 2018, são ilustradas por imagens de arquivo, com fotos daquele período e trechos de uma edição do Programa Mino Carta, da TV Tupi, em 1979, sobre a Libelu, bem como do curta documental O Apito da Panela de Pressão (1977) – Muniz, aliás, ressaltou, durante a apresentação do filme no festival, a importância da Cinemateca Brasileira na preservação de obras como esta. O diretor ainda instiga suas lembranças através de alguns objetos da época, como um cartaz ou uma reportagem. E longa, porém, não ousa ir além desses tradicionais dispositivos documentais, tendo como trunfo o panorama amplo do assunto para pontuar as contradições dentro do movimento e, particularmente, as percepções que os ex-militantes têm hoje sobre aqueles anos.


Enquanto um dos primeiros depoimentos exalta o heroísmo da Liberdade e Luta, a montagem já o contrapõe com outro criticando o exagero do discurso hiperbólico do anterior, para um deles os definir como “velhos patéticos”. São pontuadas as diferenças deles frente às outras tendências políticas presentes na USP, com um discurso mais lúdico e artístico em relação às demais, mais sisudas. Mas enquanto criticam que a “luta armada era desassociada das massas”, os mesmos se orgulham da predominância do rock em suas festas enquanto as outras alas da universidade defendiam a música de protesto, a MPB ou o samba para se aproximar do que o povo escutava.


Esses contrassensos nas visões de ambos os lados, provavelmente, causarão um misto de assentimento e discordância com tais declarações por parte do espectador, que certamente sentirá algo que o próprio filme aponta: que se tratava de um movimento que, embora muito preocupado com a situação da população brasileira, estava, de fato, longe da sua realidade. Há sempre algo de condescendente em seus discursos sobre a aproximação popular ou com a periferia e, se a fala de um dos integrantes de que só toma antidepressivos, “coisa que todo mundo usa”, já denota um pouco dessa visão de classe média em um país onde o acesso a tais tratamentos psicológicos e medicamentos é bem restrito nas classes mais baixas, a notável presença de uma única pessoa negra entre os entrevistados escancara o caráter burguês da luta. Um deles faz o mea culpa de que era um grupo dominado por “esquerdomachos em desconstrução” e a sensação é de que alguns ingressaram alimentados por um furor da juventude ou apenas a necessidade de pertencimento, como fica implícita na voz de um homem confessando só ter entrado por causa de uma garota e na fala do antes admirador e membro de baixo escalão da Libelu, o jornalista Reinaldo Azevedo.


Aliás, é perceptível, desde o início, ao se observar o GC identificando os entrevistados, como vários migraram para o jornalismo, algo que será motivo de questionamento na parte final. “O sistema acabou assimilando vocês?”, pergunta Diógenes para receber várias respostas. Como já apontado em um dos áudios da abertura do longa, as responsabilidades da vida adulta chegaram a todos, mas há também o cansaço apontado por uma das figuras mais combativas que se transformou em crítico gastronômico, a falta de propósito e de saber “que era certo” no momento da dissolução do grupo dentro do Partido dos Trabalhadores, assim como fez o membro mais eminente do Libelu em Ribeirão Preto, Antonio Palocci que, em prisão domiciliar, ponderou sobre o fato de ter cedido à engrenagem política corrompida para alçar e se manter no poder.


Existe pouco aprofundamento nas figuras que tomaram um rumo ideológico oposto, mas o contraste dentro do mesmo espectro entre os que consideram o passado uma conquista da democracia e aqueles que, por fim, se enxergam como uma geração derrotada é o mais interessante. Até porque ambas as percepções são verdadeiras e coexistem na realidade contraditória que as convicções políticas, muitas vezes, evitam enxergar. Frente ao dilema da dificuldade de fazer da vida um manifesto político constante, a valente militância se arrefeceu e muitos se tornaram aquilo a qual lutavam contra; alguns, ainda sem se dar conta disso. Por isso, nem eles nem tampouco o filme são capazes de formular e alertar às novas gerações onde a luta se perdeu.

 

Competição de Longas e Médias-Metragens Brasileiros

Duração: 95 min | Classificação: Livre

Direção: Diógenes Muniz

Produção: Brasil (São Paulo/SP)

Áudio e Legendas: diálogos em português

> Sessão – 30/09/2020 (quarta), às 21h00

> Reprise – 01/10/2020 (quinta), às 15h00

No site do É Tudo Verdade ou diretamente no Looke

+ Debate – 01/10/2020 (quinta), às 17h00 no canal do ETV no YouTube


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