É TUDO VERDADE 2020 | Potência adolescente e atos de Estado
Atualizado: 9 de mai. de 2021
A competição de longas e médias-metragens brasileiros desta 25ª edição do festival É Tudo Verdade continua a toada de documentários de retratos coletivos a partir de um único ambiente. É o que João Jardim faz em Atravessa a Vida (2020), filme que acompanha os estudantes do último ano do ensino médio de uma escola do interior de Sergipe em todo seu cotidiano, dramas pessoais e esperanças individuais e nacionais. Enquanto isso, na competição internacional, o romeno Colectiv (2019), de Alexander Nanau, mostra um Estado que falha em proteger os seus cidadãos através das investigações sobre um esquema de fraude na saúde público da Romênia deflagrado após um trágico incêndio. Confira mais sobre ambos os títulos a seguir.
Atravessa a Vida (2020)
A câmera segue uma aluna em seu trajeto até a escola, adentrando no recinto junto com ela para tornar-se íntima, junto com o espectador, daquele ambiente e das pessoas que o povoam. Essa é a abertura de Atravessa a Vida (2020), novo documentário de João Jardim, que volta seu olhar aos estudantes do 3º ano do ensino médio de um colégio de Simão Dias, município do interior do Sergipe, para descobrir, através deste retrato coletivo, as aflições e desejos da juventude brasileira. O longa é uma fusão de Entre os Muros da Escola (2008) e Últimas Conversas (2015), com o registro do cotidiano da sala de aula sem a tensão da ficção francesa de Laurent Cantet, pois os dramas dos adolescentes acontecem, de fato, dentro de suas casas e são apenas relatados em entrevistas individuais como as que Eduardo Coutinho fez em seu último filme ou desabafados em alguma atividade escolar.
A dinâmica adotada pelo diretor de Lixo Extraordinário (2010) e Janela da Alma (2001) mescla três diretrizes em sua narrativa, sendo uma delas as dificuldades recorrentes da Educação no país, como a baixa frequência e dispersão dos estudantes das turmas noturnas e as faltas dos professores. Surgem, então, os problemas pessoais que afetam os alunos, muitos deles ligados à relação com seus pais, especialmente à certa falência da figura paterna por ene motivos. E costurando tudo isso, estão as questões em voga no Brasil atual, e de outrora, como mostram as aulas de História em que a matéria sobre a Era Vargas, por exemplo, serve de estímulo para registrar as opiniões ainda superficiais e contraditórias desses adolescentes sobre pena de morte.
Assim, um depoimento confessional de uma jovem sobre automutilação e suicídio é seguido por um debate franco em sala, no qual a professora usa a canção Pais e Filhos, do Legião Urbana como mote – aliás, Dado Villa-Lobos assina a trilha sonora do longa –, tendo a música como recurso pedagógico em outras ocasiões. O trabalho em grupo sobre a Ditadura tem seu conteúdo intensificado pela montagem com a reforma na escola e a proximidade das eleições presidenciais de 2018, ano em que o documentário foi filmado.
É claro que também há a leveza das conversas entre amigos e namoros nos corredores e aniversários surpresas neste recorte, mas o foco de Jardim está em como esse momento-chave, em que estas pessoas são forçadas a decidir os rumos de suas vidas em tão tenra idade, os atinge. O Enem, Exame Nacional do Ensino Médio que, antes usado apenas para avaliar a qualidade das escolas, se tornou um facilitador para o ingresso de muitos em universidades públicas, mas é evidente a pressão que causa nos alunos, que tem todos os três anos de aprendizado avaliados em apenas dois exaustivos dias. Além do próprio fato de se aproximar o momento de despedida daquele mundo com o qual cresceram todos juntos, indo cada um tomar rumos diferentes sozinhos na fase adulta.
Logo ao início do filme, o professor de Filosofia cita Aristóteles e sua ideia sobre ato e potência, com o primeiro sendo a existência de fato e o segundo, tudo aquilo que pode vir a ser, traçando um paralelo com a própria adolescência. Se fosse realizado algo como a série de documentários Up (1964-), de Paul Almond e Michael Apted, que acompanha um grupo de britânicos desde a infância, a cada sete anos, uma futura sequência de Atravessa a Vida poderia ver até onde estes jovens foram. Mas, já agora, paira sobre a obra um sentimento paradoxal de esperança e desalento no retrato de uma geração que não tem sua potência aproveitada por um país cujo futuro vindouro nunca veio de fato, e que se tornou cada vez mais distante e incerto nos últimos anos.
Atravessa a Vida (2020)
Duração: 82 min | Classificação: Livre
Direção: João Jardim
Produção: Brasil (Rio de Janeiro/RJ)
Áudio e Legendas: diálogos em português, com legendas em inglês
> Sessão – 25/09/2020 (sexta), às 21h00
> Reprise – 26/09/2020 (sábado), às 15h00
No site do É Tudo Verdade ou diretamente no Looke
+ Debate – 26/09/2020 (sábado), às 17h00 no canal do ETV no YouTube
Colectiv (2019)
O público brasileiro que já acompanha o cinema romeno contemporâneo, ao menos em suas premiadas ficções do século XXI que fizeram surgir o termo Nouvelle Vague Romena, sabe que, infelizmente, há uma familiaridade que vai além do “parentesco” entre línguas latinas. Na verdade, ela vem do contexto similar de um país marcado pela corrupção, burocracia e subdesenvolvimento, também observado em filmes de outras nações do Leste Europeu. Ainda assim, continua sendo estarrecedor o que revela Colectiv, quarto longa do documentarista Alexander Nanau, que passou pelos festivais de Veneza, Toronto e outros eventos dedicados ao gênero.
Tudo começa com uma primeira tragédia: o incêndio na boate Colectiv, na capital Bucareste, em 2015, que matou 27 pessoas e feriu 180 – um episódio que, provavelmente, fará o espectador brasileiro se lembrar do caso da boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, em 2013. No entanto, mesmo as vítimas com queimaduras mais leves continuaram a falecer nos hospitais. Um problema que passa a ser investigado pelo jornal esportivo local Gazeta Sporturilor, após o editor-chefe Cătălin Tolontan e sua equipe de jornalistas receberem a denúncia de uma médica.
Descobre-se que as infecções hospitalares são causadas pela diluição do desinfetante bactericida utilizado nas unidades, parte de um grande esquema de superfaturamento e fraude no sistema de saúde da Romênia. Não por menos, o país tem uma das maiores taxas, em toda a Europa, de bactérias altamente resistentes nos hospitais. As reportagens geram uma grave crise governamental, provocando a renúncia do então primeiro-ministro Victor Ponta e a entrada de um governo de transição mais técnico. Contudo, a disposição do novo ministro da saúde Vlad Voiculescu em resolver a questão e atender os jornalistas e a equipe de filmagem, logo é confrontada pelas dificuldades de tentar ajustar uma corroída máquina estatal – e privada, já que tal corrupção não ocorreria sem o interesse de empresários como o mostrado pelo documentário – e o jogo político fazendo com que tudo permaneça igual nas eleições seguintes.
O filme acompanha os passos dessa investigação por 14 meses, através do registro do próprio trabalho dos repórteres, reuniões do governo e a rotina dos sobreviventes, como Tedy Ursuleanu, que passou a usar seu corpo como lembrança das vítimas da corrupção e símbolo de resistência. Ao utilizar das ferramentas do cinema direto, sem recorrer às tradicionais entrevistas, Nanau imprime um ritmo na direção e montagem que se assemelha a um thriller jornalístico e, por consequência, político, com toques dramáticos. A princípio, recorda a tensão e choque causados pela minissérie Chernobyl (2019), mas, com a chegada da pandemia, o documentário traz uma desoladora semelhança com o noticiário brasileiro quanto ao descaso dos governantes em relação à saúde pública e o bem-estar de seus cidadãos.
Colectiv (Collective, 2019)
Duração: 109 min | Classificação: 14 anos
Direção: Alexander Nanau
Produção: Romênia e Luxemburgo
Áudio e Legendas: diálogos em romeno, com legendas
> Sessão – 25/09/2020 (sexta), às 18h00
No site do É Tudo Verdade ou diretamente no Looke
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