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Foto do escritorNayara Reynaud

ZONA ÁRIDA | A ficção da América

Atualizado: 3 de jan. de 2021


Parque de diversões temático do Velho Oeste no Arizona em cena do documentário brasileiro Zona Árida (2019), de Fernanda Pessoa | Foto: Divulgação (Olhar Distribuição / Créditos: Rodrigo Levy)

“O que é preciso é entrar na ficção da América, na América como ficção. É nessa condição que ela domina o mundo”, disse o sociólogo francês Jean Baudrillard em seu livro America (1986), em uma citação que não apenas abre o documentário brasileiro Zona Árida (2019), mas é seguida à risca pela cineasta Fernanda Pessoa. Um projeto mais pessoal da diretora de Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava (2017), seu segundo longa traz o seu retorno para Mesa, a cidade do Arizona em que ficou durante um intercâmbio nos Estados Unidos entre 2001 e 2002, 15 anos depois. Contudo, por mais que seja um trabalho personalista, como evidenciado pela sua narração, em uma tendência muito em voga na produção documental brasileira, a realizadora se mostra mais ciente de sua posição privilegiada e se aproxima do espectador por meio desse senso comum que Hollywood forneceu ao mundo sobre o mito norte-americano.


O título que recebeu uma menção honrosa no Dok Leipizig, festival alemão especializado no gênero, abre com a própria documentarista de costas, fitando o horizonte do deserto do Arizona através de uma grande janela de uma construção abandonada, que se assemelha justamente a tela de um cinema. O texto da narração se estrutura como uma longa carta de Pessoa, hoje, para a Fernanda de outrora, então uma jovem de 15 anos que sonhava com a vida americana que via nos filmes e se deparou com algo de estranho no cenário ao qual chegou, mas que na época não compreendia. Somente com meia hora de filme, a diretora revela que Mesa foi considerada a cidade mais conservadora dos Estados Unidos segundo um estudo de 2014, realizado pelas universidades UCLA (Universidade da Califórnia) e MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts).


Contudo, os sinais já surgem antes no documentário, desde a escolha pelos planos fixos como indicadores dessa rigidez do conservadorismo que emana aos poucos nas entrevistas que a cineasta, retornando ao lugar em 2016, justamente às vésperas da eleição de Donald Trump, faz com a segunda família que a recebeu, alguns colegas e professores da escola onde estudou e a mãe de uma amiga de intercâmbio. Esta confessa: “somos entediantes”, ao descrever o modo de vida local, dependente do carro para tudo e tendo o shopping como principal fonte de lazer, para depois definir como conservador alguém de “mente aberta”. Tais descrições, bem como suas contradições, vão aparecendo naturalmente em seus depoimentos, seja no sonho do seu “irmão temporário” de ter uma família, ser o provedor e ter a sua mulher em casa cuidando dos filhos ou nas falas do amigo de origem mexicana que repete as difamações da imagem preconceituosa que se tem do país vizinho, sem se dar conta que reproduz o estereótipo norte-americano em sua paradoxal defesa do porte de armas.


Aliás, ao abordar o tratamento vulgar que é dado aos imigrantes ilegais em uma terra que antes pertencia ao México, além de outras apropriações culturais, a cineasta levanta a questão do destino manifesto, o mito fundador dos Estados Unidos que levou à conquista do Oeste do continente e marca até hoje a visão missionária que a nação tem de si mesma. A ideia de “excepcionalismo americano” foi presenciada in loco pela então adolescente recém-chegada, que acompanhou as reações ao 11 de Setembro, com direito a fala de um aluno que considerava como causa do ato terrorista a inveja alheia pelo fato deles serem “livres” e a consequente invasão do Afeganistão onde o país foi mais uma vez “ensinar a sua liberdade” para o Oriente Médio. No entanto, também foi e continua a ser passada à cineasta, bem como a todos os brasileiros, estrangeiros e aos próprios cidadãos norte-americanos, através de Hollywood, que construiu as bases de sua hegemonia no mercado cinematográfico mundial por meio de uma política de Estado promocional dos EUA, contribuindo, portanto, para espalhar essa “autoimagem americana” para todo o mundo.


É a capacidade de “transformar tudo em reprodução” que a narração destaca enquanto a câmera registra os parques de diversão do Velho Oeste criados a partir de cidades fantasmas da região ou recriações. Mas se o discurso é forte no faroeste, não quer dizer que a mensagem não seja transmitida desde a tenra idade, como frisa o documentário em seu subtexto. Se em Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava, Pessoa trazia uma colagem de cenas de obras da pornochanchada para visualizar o contexto político, econômico e social do Brasil sob a Ditadura por trás do conteúdo sexual daquelas produções, a diretora volta a trabalhar com a montagem de excertos de filmes, porém, somente de modo sonoro e com as produções adolescentes com a qual cresceu. Trechos de As Patricinhas de Beverly Hills (1995), Prova Final (1998), Ela É Demais (1999), Nunca Fui Beijada (1999), 10 Coisas que Eu Odeio em Você (1999), Teenagers: As Apimentadas (2000) e Mal Posso Esperar (1998) são utilizados no desenho de som de Daniel Turini, Fernando Henna e Henrique Chiurciu – que também criam ambiências da época, a exemplo do barulho da internet discada – para ilustrar as imagens típicas de high school que ajudaram a criar o imaginário sobre os Estados Unidos, com o qual a jovem brasileira se confrontaria na realidade.


Zona Árida pontua essa desilusão gradualmente, desde o medo inicial pela divisão dos grupos no refeitório com sua conotação étnica também intrínseca e as dedicatórias no seu livro do ano objetificando-a pela sua nacionalidade. A Fernanda adulta observa a contradição da adolescente sorridente em praticamente todas as fotos, incluindo aquela com o apenas colega de escola caubói, fingindo ser uma deles, mas que tem como maiores alegrias deste período o contato com as amigas no Brasil. Só mais para frente, diz com todas as letras que foi lá que se percebeu latina, pela primeira vez, e não por um bom sentido, mas por causa da discriminação em várias instâncias, seja na ameaça anônima, nos graves problemas com a primeira família que a abrigou ou nas exigências da agência de intercâmbio depois disso.


Todavia, a cineasta sabiamente não transforma isto em uma história totalmente maniqueísta de vilões ianques e mocinhos tupiniquins. Aponta tanto o colonialismo cultural no Brasil e os reflexos disso na atualidade do país sul-americano envolto em uma onda de conservadorismo e pretenso nacionalismo subserviente, quanto deixa subentendido que os próprios norte-americanos são subjugados por esses mesmos ideais do estilo de vida e do Sonho Americano. Algo sublinhado na figura de Kristen, a amiga desbocada a quem a estudante estrangeira se identificou por parecer não se encaixar ali, mas que, depois, não só acabou seguindo os passos dos amigos em uma cidade de grande maioria mórmon, como, para a câmera, destila preconceito de modo mais convicto do que todos os outros entrevistados.


A adolescente que aprendeu inglês com as músicas e os programas da MTV, compreendeu quando adulta que, além de não demonstrarem nenhum interesse em aprender outra língua, o olhar autocentrado da nação norte-americana não os permite enxergar nada além de si mesmos. Muito menos de que são apenas atores a interpretar o mesmo papel de sempre na “grande ficção americana”. Tal qual o alemão Wim Wenders que ansiava por realizar um filme americano e, após fracassar, foi para o deserto e assumiu seu olhar estrangeiro para mostrar de fato a América em seu clássico Paris, Texas (1984), como o mesmo confessa no documentário Wim Wenders, Desperado (2020), a impossibilidade de viver aquilo que via nas telas fez Fernanda Pessoa criar o seu próprio filme e mirar Zona Árida com os olhos de uma brasileira.

 

Zona Árida (2019)

Duração: 76 min | Classificação: 12 anos

Direção: Fernanda Pessoa (veja + no IMDb)

Distribuição: Olhar Distribuição

Plataformas: NOW, Oi Play e Vivo Play (VOD), a partir de 8 de outubro de 2020



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