CINE CEARÁ 2020 | A lente voltada ao Brasil marginalizado
Atualizado: 16 de set. de 2022
Realizada entre os dias 5 e 11 de dezembro em formato híbrido, a 30ª edição do Cine Ceará contou tanto com exibição presencial, com plateia reduzida, dos filmes no tradicional Cineteatro São Luiz, na capital Fortaleza, e também online no streaming do Canal Brasil, dentro da plataforma Canais Globo. O NERVOS acompanhou o festival virtualmente e destaca, neste primeiro texto, as três produções nacionais da competição de longas ibero-americanos do evento, que trazem como traço comum uma seleção de retratos de figuras marginalizadas na sociedade brasileira. Confira a seguir mais detalhes sobre o drama que abriu este Cine Ceará 2020, A Morte Habita à Noite (2020), do pernambucano Eduardo Morotó; a distopia Última Cidade (2020), do cearense Victor Furtado; e o documentário ambientado no Pará, Nazinha Olhai Por Nós (2020), do carioca Belisario Franca.
A Morte Habita à Noite (2020)
O aspecto sujo e decadente que marca A Morte Habita à Noite já se denota na primeira cena do filme, onde os suados personagens comem sem cerimônia à pequena mesa de um tenebroso – seja pela falta de limpeza ou de luz – apartamento que serve de cenário. No entanto, o tom macabro que habita o début de Eduardo Morotó logo se faz presente nesta abertura, com um corpo que cai na janela ao fundo. O suicídio do qual o casal é espectador é tratado igualmente com espanto e indiferença por cada uma das partes, dando uma amostra da forma como a obra que estreou no Festival de Roterdã acaba transformando a decadência humana que é seu objeto de interesse mais em um fetiche do que em um estudo.
Quem procura ignorar o fato é Raul (Roney Villela), a quem o público é apresentado como um homem desgastado pelos excessos de outrora: doente, sob um estado de embriaguez que lhe parece impregnado, sobrevivendo mal em subempregos que não lhe apetecem e cujos dias pregressos de escritor são revelados mais ao final, em um breve vislumbre de suas páginas. Ao seu lado, durante os últimos anos e os primeiros momentos do filme, está a companheira Lígia (Mariana Nunes) que, cansada dessa vida, o deixa. Ela é uma das três mulheres que cruzam a trajetória do protagonista ao longo da história, com Cássia (Endi Vasconcelos) sendo a de maior destaque, como uma jovem a qual o personagem dedica uma atenção quase paterna, apesar da sexualidade que envolve o ambiente dela, e a figura mais alegórica interpretada por Rita Carelli, em um prólogo mais reflexivo sobre a morte e o que vem antes dela.
Com uma prolífica carreira em curtas-metragens como Agreste Adentro (2006) e Todos Esses Dias em que Sou Estrangeiro (2013), o cineasta pernambucano que mora no Rio de Janeiro, há mais de uma década, retornou ao Recife para rodar seu primeiro longa que, embora rememore o cinema do conterrâneo Cláudio Assis por causa do olhar para aquilo e aqueles que estão no submundo da cidade – detalhe, inclusive, para a citação direta à Giselle (1980), de Victor di Melo, no cinema pornô –, fica muito preso à reverência declarada à obra do escritor Charles Bukowski (1920-1994). Isso confere ao filme uma aura de romantização da marginalidade, ao permanecer encantado pelos estereótipos, sem demonstrar um genuíno interesse em descobrir quem são essas pessoas à margem da sociedade e as questões que o rodeiam como o alcoolismo, a prostituição e tantas mais. Neste retrato distante, quem imprime vida são os atores, com destaque para a atuação de Roney Villela, que finalmente tem a chance de mostrar mais o seu talento com o protagonismo que é raro em sua filmografia e constrói um tipo que suplanta os vícios do roteiro, e Endi Vasconcelos como uma revelação a ficar de olho.
A Morte Habita à Noite (2020)
Duração: 94 min | Classificação: 16 anos
Direção: Eduardo Morotó
Roteiro: Eduardo Morotó
Elenco: Roney Villela, Mariana Nunes, Endi Vasconcelos, Rita Carelli e Pedro Gracindo (veja + no site)
Produção: Brasil
Última Cidade (2020)
“À força de tanto ler e imaginar, fui me distanciando da realidade ao ponto de já não poder distinguir em que dimensão vivo”. A frase de Dom Quixote de la Mancha (1605) é uma boa síntese do poder especulativo empregado por Victor Furtado em seu primeiro longa, Última Cidade, declaradamente inspirado pelo clássico do escritor espanhol Miguel de Cervantes, além da herança da cultura sertaneja e da evocação do passado latino-americano do autor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015), e daquilo que padece no filme em detrimento de suas tão estudadas alegorias. A jornada de João (Julio Adrião, encerrando o ano como o ator brasileiro de maior destaque em 2020, após Sertânia e Aos Pedaços), um típico vaqueiro de um sertão praticamente inexistente nesse cenário atual e, ao mesmo tempo, pós-apocalíptico, é pontuada por esses conhecidos símbolos e arquétipos remodelados à estética e ideias contemporâneas.
Montado em seu cavalo Cruzeiro, o protagonista anda pelas estradas, sendo acompanhado de Tahiel (Hector Briones), seu “Sancho Pança” vindo de algum país vizinho latino-americano, se deparando com os novos moinhos de vento das turbinas eólicas ao seguir rumo à “última cidade”. Sua luta quixotesca remonta ao objeto de grande interesse do cinema nacional nesta década passada, quanto à desapropriação de terras e imóveis gerada pela cobiça da especulação imobiliária desenfreada. Contudo, ele é revestido por uma abordagem bem diferente do habitual, não só pela distopia como um guia do qual o jovem cineasta não deseja se prender, versando imageticamente desde a ancestralidade sertaneja ao futurismo queer, mas na visão do fracasso desse modelo urbano brasileiro em que a marginalização da população se torna impossível de esconder da paisagem turística.
Realizador de curtas como Raimundo dos Queijos (2011) e Meu Amigo Mineiro (2013), Furtado consegue imprimir um sentimento e discurso de latinidade maior que o desejado por outro road movie brasileiro recente, King Kong en Assunción (2020), de Camilo Cavalcante, mas se é possível traçar um ponto em comum com outro exemplar pernambucano, Última Cidade partilha da mesma vontade antropofágica vista em Bacurau (2019), em termos de gêneros cinematográficos. Mais do que a fusão do flerte da ficção científica com faroeste e de futurismo empregada na tradição cinematográfica brasileira do sertão empregadas por Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho no premiado longa, há aqui na figura quixotesca de João um símbolo da resistência do cinema nacional, particularmente nordestino, ainda mais em um núcleo de produção independente tão prolífico quanto a cena cearense, contra o “Capital”, que tem no navio aportado na Fortaleza do futuro a materialização perfeita da alegoria crítica ao capitalismo macroeconômico, mas que também pode ser enxergado como o poderoso “capital hollywoodiano” que, metaforicamente, deixa este cenário de terra arrasada. No entanto, tal qual Quixote em uma luta vã, a obra ergue os seus moinhos de vento em várias referências e conceitos que não deixam a narrativa respirar, afastando assim o público de embarcar nessa difícil jornada e tê-lo ao seu lado na principal batalha para absorver a sua mensagem política, seja geral ou específica sobre a indústria audiovisual.
Última Cidade (2020)
Duração: 70 min | Classificação: Livre
Direção: Victor Furtado
Roteiro: Victor Furtado e Thiago Mendonça
Elenco: Julio Adrião, Hector Briones, Danilo Pinho, Yasmin Salvador, Cristina Costa, Liduina Costa, Maria do Carmo e José Rufino (veja + no site)
Produção: Brasil
Distribuição: Marrevolto
Nazinha Olhai Por Nós (2020)
Um dos nomes mais relevantes a surgir na produção documental nacional nos últimos anos, Belisario Franca encerra a sua Trilogia do Silenciamento com Nazinha Olhai Por Nós. Com um olhar voltado para episódios esquecidos da História Brasileira, o cineasta carioca iniciou esse trabalho com o premiado Menino 23: Infâncias Perdidas no Brasil (2016), o melhor do trio em caráter denunciativo e cada vez mais pertinente para compreender a ressurgência de discursos de ódio no país, seguindo com Soldados do Araguaia (2017), o mais formal em termos de estética e dispositivo, mas igualmente o mais ousado na sua abordagem temática de um período recorrentemente retratado no gênero. O novo trabalho, porém, se diferencia pelo recorte contemporâneo do retrato de um sistema carcerário falido, imprimindo uma maior dinâmica que os anteriores ao observar cinco personagens, sendo quatro detentos e Nossa Senhora de Nazaré, a venerada padroeira do Pará cuja festa do Círio de Nazaré serve de esperança redentora para os presidiários do estado vislumbrarem a liberdade, pelo menos, por alguns dias ou horas.
O público é, então, convidado a adentrar em uma penitenciária feminina e uma colônia masculina, conhecendo as diferentes histórias de vida que levaram duas mulheres e dois homens para a cadeia. Problemas comuns como a reincidência criminal dos ex-detentos, o vício, um relacionamento amoroso tóxico e a falta de investigação que aprisiona pessoas inocentes estão representadas pelo quarteto, tal qual questões sociais amplas, a exemplo do machismo, o racismo, a desigualdade social e o discurso cego de puro encarceramento como solução dos problemas de violência crescente no país. Tudo isso está ali nestes personagens, sem que Franca precise elaborar uma reflexão direta através de discurso de uma narração, aqui inexistente, ou pela boca de um dos seus entrevistados, que são depoentes confessionais ou testemunhais em vez de especialistas balizando o tema.
O diretor também evita emitir juízos de valor, deixando ao espectador realizar seu próprio julgamento quanto aos retratados e suas análises quanto aos sistemas prisional e judiciário brasileiros. É possível que haja dúvidas quanto à questão ética de se revelar a face da maioria dos detentos registrados até como “coadjuvantes”, já que se trata de um documentário não somente sobre a rotina na prisão, mas principalmente das dificuldades de sair e retornar à dita “vida normal”, como a fala quase ao final da diretora da penitenciária frisa sobre a falsa promessa de reintegração à sociedade, que preferia esquecer estas pessoas atrás das grades em vez de recuperá-los. De qualquer modo, a ideia que, independentemente disto ou mesmo reforçados pela cobertura midiática, estes rostos já estão marcados, até antes mesmo de serem encarcerados, paira sobre os destinos dos quatro protagonistas e seus semelhantes.
Da mesma forma, assim como em seu longa anterior, a visão humanista do cineasta não permite que o filme recaia em um discurso progressista comum, redutor das complexidades humanas, geralmente proferido pelas elites intelectuais sem real vivência do contexto ao qual a maior parte da população está inserido. De um lado, está o registro de que as igrejas, sejam a Católica aqui retratada ou as neopentecostais, são as únicas instituições a alcançarem os detentos, tal qual acontece em outras camadas marginalizadas da sociedade – só quem mora ou já teve a oportunidade de estar em uma região periférica sabe o que são os cantos de vários cultos evangélicos ecoando pelas ruas num domingo à tarde, e o quanto isso simboliza uma das poucas opções de lazer e escape que são oferecidas por ali –, demonstrando como as críticas generalistas contra a fé alheia, em vez de direcionadas aos líderes religiosos e/ou instituições que se mostram aproveitadores, são contraproducentes em uma cultura alicerçada nesses valores, como a brasileira e latino-americana, no geral. Do outro, a representação da questão penitenciária através do olhar materno e misericordioso da Nazinha, como os paraenses chamam sua padroeira, pede do espectador justamente a máxima cristã de se voltar ao próximo, hoje em dia, algo raro até mesmo nos praticantes dessas religiões.
Nazinha Olhai Por Nós (2020)
Duração: 87 min | Classificação: 12 anos
Direção: Belisario Franca
Roteiro: Belisario Franca, Ismael Machado e Yan Motta (veja + no site)
Produção: Brasil
Distribuição: Boulevard Filmes
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