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Foto do escritorNayara Reynaud

UPLOAD | O amor nos tempos do capitalismo post mortem

Atualizado: 20 de mai. de 2020


Robbie Amell, Allegra Edwards, Kevin Bigley e elenco em cena do terceiro episódio da série Upload (2020) | Foto: Divulgação (Amazon)

Em tempos de quarentena, em que a distância física se torna necessária e as facilidades do mundo digital tentam supri-la através de experiências virtuais, ainda que estas não substituam o contato real entre as pessoas, a série Upload (2020) veio acertando em cheio nesses velhos e novos questionamentos humanos, colocados em perspectiva neste período de pandemia. O que o público, talvez, não imaginasse era encontrar tais reflexões na nova atração de Greg Daniels para o Amazon Prime Video. Em 10 episódios rápidos de maratonar, o criador de Vida de Escritório / The Office (2005-13) e Parks & Recreation: Confusões de Leslie (2009-15/2020) abandona o registro da vida cotidiana com a linguagem do mockumentary – falso documentário – que seus sucessos anteriores possuía para criar um mundo novo, embora muito semelhante ao atual, nesta sátira tecnológica e futurista.


O futuro, no entanto, não está muito distante. O ano é 2033 e veículos autônomos cruzam pelas ruas de Los Angeles, onde o programador Nathan Brown (Robbie Amell) sofre um raro acidente com o carro robotizado que o coloca entre a vida e a morte, literalmente. Isso porque, ao ser pressionado no hospital para escolher rápido entre morrer do “jeito antigo” ou prolongar sua vida para uma existência virtual, o playboy sem muito dinheiro escolhe fazer o “upload” para Lakeview, o caríssimo plano pós-vida que a sua namorada socialite Ingrid (Allegra Edwards) tem direito. E assim, junto com o protagonista e seu “anjo”, a assistente de suporte ao cliente Nora Antony (Andy Allo), o espectador vai descobrindo este Paraíso digital – que não é o único – onde a consciência e as memórias humanas são transferidas para seus avatares viverem em um resort de luxo pela eternidade, ainda em contato com seus parentes e amigos vivos, em carne e osso.


A premissa pode fazer as plateias mais novas facilmente compararem com The Good Place (2016-20) ou um episódio de Black Mirror (2011-), mas, como um produto no meio do caminho entre a fantasia cômica e a antologia de distopias tecnológicas, Upload recorda mais a mescla de gêneros e tons de uma série mais antiga, Um Toque de Vida / Pushing Daisies (2007-09). Prestes a lançar outra comédia de ficção científica, Space Force (2020) na concorrente Netflix, Daniels não investe aqui no mesmo humor declarado de The Office e Parks & Recreation, o que pode decepcionar os fãs do realizador ou quem espera rir sem parar, e sim no intercâmbio entre a acidez de sua sátira e a doçura de um romance impossibilitado de se concretizar – e que, apesar das várias subtramas adjacentes, é o que realmente move a narrativa e o espectador adiante.


Andy Allo e Robbie Amell em cena do primeiro episódio da série Upload (2020) | Foto: Divulgação

Neste sentido, o ator canadense Robbie Amell, de D.U.F.F. (2015) e Flash (2014-), pode ainda ser bem limitado na construção de seu Nathan, mas tem uma química ótima com Andy Allo, atriz de Chicago Fire: Heróis Contra o Fogo (2012-) que é o grande destaque com os dilemas de sua Nora. Por sua vez, Allegra Edwards, de Briarpatch (2019-), tem uma função mais ingrata com um papel mais estereotipado, mas se sai bem nas brechas do roteiro que aprofundam a personagem.


O romantismo vem como uma forma de tratar com leveza uma temática complexa como a morte. Questões filosóficas e/ou teológicas sobre consciência, alma, vida e Paraíso são levantadas com maior ou menos êxito durante a história, a exemplo do drama do pai doente de Nora, Dave (Chris Williams), que, apesar da insistência da filha em usar o seu desconto de funcionária para ir à Lakeview, acredita que a sua esposa, que teve uma morte repentina, o espera no verdadeiro Paraíso. Outros arcos dramáticos são desenvolvidos na imaginação de como seriam as relações humanas dentro desta realidade, com destaque para o do personagem Dylan (Rhys Slack), cujo avatar ainda é igual a quando morreu, mas, atrás do corpo de menino, existe alguém que já teria 18 anos e vê o irmão e o amigo envelhecerem na Terra.


A frente da criação, produção, roteiro – entre outros, o seu filho Owen Daniels assina o texto de um episódio, além de atuar como o onipresente cara da inteligência artificial, que pode ser concierge, garçom e muito mais neste retiro digital – e também da direção do início da temporada, Greg ainda traz doses de suspense, no mistério envolvendo a “quase morte” do protagonista que, ademais ter sido vítima da exceção na segurança dos carros autônomos, tem parte de suas memórias estranhamente comprometidas. Porém, mais que isso, há neste componente e na ambientação desta realidade virtual um olhar crítico o mundo capitalista atual, mesmo que projetado para o futuro. Enquanto muito se fala dessa Indústria 4.0 que alia os avanços da tecnologia à produção e de como, em uma projeção extremamente otimista, ela poderia melhorar a vida humana, o showrunner traz uma visão mais pessimista sobre essa sustentável Sociedade 5.0, com os mesmos vícios de ontem e de hoje.


Isso está presente desde a concepção da série, com essa comercialização da vida após a morte e do luto – quase uma progressão do capitalismo afetivo que a socióloga Eva Illouz conceituou no livro do qual este texto empresta parte do título. E se estende às piadas sobre os monopólios das grandes corporações, em curiosas fusões de empresas reais nesse futuro imaginado, e à crítica social na desigualdade econômica que permanece tanto aos que ficam quanto aos que vão para essa vivência post mortem com a caracterização do grupo dos Dois Gigas, que só podem arcar com o “plano básico” de Lakeview. Portanto, por mais que roteiro e direção nem sempre encontrem uma maneira de aproveitar todas as facetas da série – embora o quinto e o sétimo episódios sejam interessantes em seus questionamentos dramáticos, o oitavo e nono possuem mais tensão narrativa e romance, por exemplo – o final da temporada traz não só um bom gancho ou cliffhanger para uma próxima, mas a possibilidade de explorar mais esse submundo nada virtual, onde os marginalizados não podem se dar ao “luxo” de pensar ou sentir.

 

Upload (Upload, 2020)

Série ficcional | 1ª temporada: 10 episódios, a partir de 1 de maio de 2020

Criação: Greg Daniels | Roteiro: Greg Daniels, Mary Gulino, Aasia LaShay Bullock, Mike Lawrence, Shepard Boucher, Owen Daniels, Alyssa Lane e Alex J. Sherman

Direção: Greg Daniels, Daina Reid, Jonathan van Tulleken e Jeffrey Blitz

Elenco: Robbie Amell, Andy Allo, Allegra Edwards, Zainab Johnson, Kevin Bigley, Andrea Rosen, Owen Daniels, Jordan Johnson-Hinds, Josh Banday, William B. Davis, Chris Williams, Elizabeth Bowen, Jessica Tuck, Matt Ward, Chloe Coleman e Rhys Slack (veja + no IMDb)



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