DEVS | Da imagem e semelhança ao Deus ex machina
Atualizado: 18 de abr. de 2021
Faz parte da essência da ficção científica se debruçar sobre a relação da Humanidade com o Conhecimento; sim, em letra maiúscula, pois diz respeito àquilo que vai além da compreensão humana prévia, até porque isto está literalmente na gênese da cultura judaico-cristã ocidental. Em maior ou menor grau, é um dilema que instiga as mais variadas histórias do gênero, mas que, muitas vezes, fica subjugado ao próprio encanto que as obras audiovisuais, tais quais os personagens destas tramas, têm pelos avanços tanto fictícios da narrativa quanto os reais dos efeitos especiais. Contudo, existem realizadores como Alex Garland que fazem questão de deixar essas reflexões em evidência frente ao tentador ilusionismo imagético – e olha que, de modo algum, o visual deixa de ser apelativo nos trabalhos do cineasta – ou o poder especulativo das teorias para os fãs.
Depois de discutir a humanidade na inteligência artificial em Ex-Machina: Instinto Artificial (2014) e em um processo mutante de Aniquilação (2018), o autor se volta a semelhantes questionamentos e à tecnologia em sua primeira minissérie, DEVS (2020). A produção da seção FX on Hulu, parceria do canal norte-americano com a plataforma de streaming, exibida no Brasil pelo FOX Premium, gira em torno da Amaya, uma empresa do ramo no Vale do Silício, na Califórnia, cujo foco principal é a computação quântica, mas que guarda seus principais avanços sob os cuidados de uma divisão secreta chamada DEVS. É justamente quando o jovem Sergei (Karl Glusman) é promovido para este setor e é assassinado após seu primeiro dia por lá, que sua noiva Lily (Sonoya Mizuno), que também trabalha na corporação de Forest (Nick Offerman), decide investigar o mistério por trás da sua morte.
Definida como um suspense tecnológico, assim como explora a espionagem industrial ou poderia se encaixar como um tech noir, o questionamento sobre o poder atual das empresas desta área, naturalmente, vem à tona – apesar da abordagem diferente, não só neste tópico, a produção conversa com a comédia Upload (2020-). Garland, porém, prefere não bater nesta única tecla para, mais uma vez, usar a tecnologia como uma lupa para comportamentos humanos atemporais. Neste caso, sem entrar muito no enredo, é a dúvida universal se realmente se tem controle sobre seu próprio destino e o que vem antes ou depois dele.
Ainda que se encarregue de muita linguagem científica para debater se o determinismo ou a teoria do multiverso poderia explicar o funcionamento do universo, DEVS faz disso uma discussão mais existencialista e teológica do que sobre as possibilidades físicas dos temas abordados, porque, afinal, tudo aqui reside na dúvida se existe ou não o livre-arbítrio. A minissérie não esconde essa correlação quando estampa simbologias religiosas, seja nas imagens da crucificação de Jesus Cristo e a morte de Joana D’Arc na fogueira – a ideia de sacrifício retorna dentro da própria trama – ou na evocação à música sacra na trilha sonora – que também contém canções que conferem aquela aura utópica de uma Califórnia nos anos 1960 e 70. E de certo modo, também coloca a ciência como uma religião, na qual alguns personagens depositam tanta fé que se assemelha a um culto, como expõe o texto e a caracterização de Forest como um “pastor da previsibilidade”.
Evocando pensamentos neste sentido e sobre a oposição entre realidade e simulação já comentados em outras obras do gênero ou até nos poemas citados de Philip Larkin e William Butler Yeats, há algo nestas perguntas que pode ser estendido para a própria arte. O que é o autor se não um deus que determina o destino de seus personagens e os espectadores os humanos que tentam, com ou sem sucesso, prever suas ações? A interpretação quase robótica de Alison Pill como Katie dá a entender que o conhecimento de seríamos atores de nós mesmos dissipasse nossas emoções, até que elas afloram na assistente do CEO e cérebro do projeto, mesmo sabendo de cor o papel a ser realizado.
Garland, aliás, não esconde a previsibilidade de alguns recursos narrativos, a exemplo da perda da filha como impulso para os desejos megalomaníacos de Forest, pois se interessa menos em revelações e mais na psique destas figuras e da mente humana. Executa isso com um ritmo próprio, exigindo a imersão do público através da sua direção, obtendo tal efeito com o ótimo trabalho da equipe técnica. Tanto que a produção concorre a quatro Emmys como Melhor Fotografia – Rob Hardy, parceiro do diretor nos longas, faz uma boa dobradinha com o do departamento de Design de Produção, que não foi lembrado na premiação –, Efeitos Visuais Especiais em Papel Coadjuvante, Edição de Som e Mixagem de Som, sendo que estes dois últimos quesitos são trabalhados com maestria para fornecer tanto elementos que ambientam quanto tensão para a história.
O roteiro, por sua vez, acaba se tornando ensimesmado em alguns pontos e, gradualmente, expositivo demais, embora o último episódio forneça reflexões suficientes para deixar o espectador pensando sobre os rumos da humanidade neste momento, desde a aceleração do nosso tempo aos algoritmos da existência computadorizada de hoje já determinam nossas vontades – como ler este texto ou assistir a essa minissérie, por exemplo – frente as nossas escolhas mais frívolas ou críticas. Por fim, o prazer de DEVS está justamente nas perguntas que deixa do que em buscar respostas.
DEVS (Devs, 2020)
Minissérie ficcional | 8 episódios, de 27 de agosto a 17 de agosto de 2020
Canal: FOX Premium 1 | Exibição: quintas às 22h15 (episódios duplos)
Horário alternativo: sextas, às 23h30; sábados, às 17h45; domingos, às 1hh10; e terças, às 12h35 | Plataforma: minissérie completa no App da FOX (streaming)
Criação: Alex Garland | Roteiro: Alex Garland
Direção: Alex Garland
Elenco: Sonoya Mizuno, Nick Offerman, Jin Ha, Alison Pill, Zach Grenier, Cailee Spaeny, Stephen McKinley Henderson, Karl Glusman, Jefferson Hall, Linnea Berthelsen e Georgia King (veja + no IMDb)
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