A AMIGA GENIAL (MY BRILLIANT FRIEND) – 2ª temporada | A complexidade das relações humanas
Atualizado: 8 de jan. de 2023
Conseguir manter-se sob o anonimato de um pseudônimo é um feito raro para autores nos tempos de hoje em que a privacidade se tornou escassa para qualquer pessoa, famosa ou não. Tal qual o artista de rua britânico Banksy, a escritora italiana Elena Ferrante é um dos poucos exemplos de vulto internacional na atualidade, mas se o mistério sobre a sua identidade contribui para o fenômeno midiático, é a qualidade da sua obra que mantém o seu sucesso junto ao público. Isso não apenas entre leitores, já que, recentemente, o seu texto também chegou à tela da TV com a série A Amiga Genial / My Brilliant Friend (2018-), coprodução da HBO com o canal italiano RAI que vem adaptando os livros de sua famosa “Série Napolitana”, iniciada com A Amiga Genial (2011).
A atração criada por Saverio Costanzo, cineasta de A Solidão dos Números Primos (2010) e Hungry Hearts (2014), acabou de encerrar a sua segunda temporada, adaptada de História do Novo Sobrenome (2012), o segundo romance da tetralogia de Ferrante, que também participa do roteiro escrito pelo showrunner ao lado de Francesco Piccolo e Laura Paolucci. O novo ano continua a seguir a vida das amigas de infância Elena Greco (Margherita Mazzucco) e Lila Cerullo (Gaia Girace, hipnotizante nesta nova fase), que cresceram no mesmo bairro pobre de Nápoles, nos anos 1950, mas tomaram rumos diferentes quando, a despeito da grande inteligência de ambas na escola primária, apenas “Lenu” pode continuar os estudos, apesar das dificuldades financeiras dos pais e da resistência da mãe – que mais tem a ver com medo do que implicância ou maldade, como pode parecer às vezes – enquanto a colega foi impedida pela ignorância paterna. Aliás, é essa complexidade humana, que vai desde a relação das protagonistas aos personagens coadjuvantes, que destaca a série em um momento de leituras mais superficiais e maniqueístas como o atual.
Desde o ambiente escolar, surge uma competição entre as duas amigas que, por vezes, serve de estímulo para a dedicação da Lenu ou para a criatividade da Lila, mas, em outras ocasiões, não se torna sadia e as corrói por dentro ou geram atitudes impensadas. No entanto, chamar essa amizade de tóxica é uma simplificação que Ferrante e Costanzo rejeitam. Assim, por mais que naturalmente tome partido da dor de uma, o telespectador é obrigado a observar as várias facetas dessa relação entre a garota tímida e introspectiva cujo acesso a outros níveis de educação não melhorou a sua baixa autoestima e a jovem orgulhosa e impulsiva cujas decepções com sua família e amores não ajudou em nada a conter a sua raiva e encanto manipulativo.
O mesmo olhar é destinado aos homens que figuram ao lado delas nesta nova temporada, em que o “Novo Sobrenome” do subtítulo vai além do casamento de Lila com Stefano Carracci (Giovanni Amura), mas a tentativa dos personagens em querer forjar uma nova vida fora de uma herança familiar e/ou de um ambiente que os sufocam, como o bairro e sua violência endêmica – lembre-se que a história de Nápoles, infelizmente, está ligada com a máfia. Esse legado maldito de pobreza não é necessariamente de bens, mas sim de espírito, como logo a adolescente recém-casada percebe na sua família, nos Carracci e nos Solara. Isso também não quer dizer que o mundo acadêmico e de pessoas “bem nascidas” onde Lenu circula seja melhor e, ao longo dos episódios, ela vai sentir essa falta de pertencimento tanto a este universo quanto ao seu de origem – uma questão que foi objeto, inclusive, de outra produção italiana recente, o filme Martin Eden (2019), de Pietro Marcello.
Da mesma forma, Stefano luta em ser alguém com o poder, mas intenções melhores do que seu pai mafioso, e acaba fadando ao fracasso, tal qual Nino Sarratore (Francesco Serpico) ao não suportar a figura paterna gentil, mas destruidora de corações femininos do poeta Donato Sarratore (Emanuele Valenti) – que o público descobre ser bem pior que isso já na primeira temporada –, porém trilhar um caminho semelhante ao se aproximar das duas amigas. E ainda que ambos sejam as figuras masculinas a magoar as protagonistas, seja o primeiro com as traições das associações comerciais que faz e a violência doméstica que inflige na voluntariosa esposa quase como uma obrigação para alguém que não está apto a este papel, diferentemente de seu excelente intérprete, e o segundo pela manipulação emocional e covardia, são todos tratados com as nuances naturais de um ser humano. Assim como Lila não é posta no lugar de “vítima”, se mostrando uma personagem muito mais rica que isso, a própria abordagem da série enriquece a discussão sobre esse machismo enraizado, até o mansplaining no final.
Trata-se um dos avanços desta segunda temporada em relação à primeira. Se havia uma mão pesada no melodrama dos episódios iniciais, com o tom de “vida sofrida como ela é” se acertando ao longo dos capítulos subsequentes, nesta nova fase a obra amadurece para um olhar fatalista à realidade. Exemplo é como quando, a partir do quarto episódio, a narrativa toma rumos novelescos que prendem o telespectador, porém, facilmente podem sucumbir ao lugar-comum, mas o roteiro evita tendo em mente que a história de amizade é mais importante que clichês folhetinescos – pelo menos, até o momento, tendo em vista que a terceira temporada já está confirmada.
Igualmente, a temporada se eleva em termos de direção, em uma evolução às referências do neorrealismo italiano dos anos 1950, e em outros aspectos técnicos quando a trama se expande além do terroso e cinzento bairro periférico, dando mais cor à fotografia, direção de arte e figurino. Se a atriz Alba Rohrwacher narra como a voz mais velha de Elena Greco, sua irmã Alice Rohrwacher, a renomada cineasta de Feliz como Lázaro (Lazzaro Felice, 2018), dirige os dois episódios de veraneio em Ischia – novamente em parceria com a diretora de fotografia Hélène Louvart, que trabalhou no filme brasileiro A Vida Invisível (2019) –, que mais uma vez trazem ao mesmo tempo uma leveza ao cenário carregado napolitano e momentos definitivos e traumáticos para Lenu. E depois de uma citação breve à Pier Paolo Pasolini, a série embarca no seu momento mais experimental no sétimo episódio, em que Costanzo filma em 16mm as memórias de Lila, mostrando como sob o seu ponto de vista, ainda que o público esteja recebendo essas lembranças filtradas pela narração da amiga, os acontecimentos de sua vida íntima adquirem um tom de terror.
E depois do rumo de suas vidas as levarem para trajetórias totalmente diferentes, há algo de reconciliador no reencontro das duas amigas no último episódio e, simultaneamente, triste quando uma delas transforma seus sonhos de criança em cinzas. Por fim, se Elena Ferrante consegue controlar a sua biografia e a vida da pessoa por trás de seu pseudônimo, ela ainda é melhor ao contar a vida dessas mulheres que não conseguem ser as autoras da sua própria história.
P.S.: como um adendo, sugiro o texto da Anna Momigliano no The New York Times, trazido pelo Estadão, sobre o cenário inóspito da literatura italiana para as escritoras
A Amiga Genial (L’Amica Geniale / My Brilliant Friend, 2018-)
Série ficcional | 2ª temporada: 8 episódios, de 16 de março a 4 de maio de 2020
Canal: HBO | Exibição: segundas, às 23h
Horário alternativo: veja os horários das reprises no site | Plataforma: minissérie completa na HBO GO (streaming)
Criação: Saverio Costanzo, baseada no livro “História do Novo Sobrenome” de Elena Ferrante | Roteiro: Saverio Costanzo, Francesco Piccolo, Laura Paolucci e Elena Ferrante
Direção: Saverio Costanzo e Alice Rohrwacher
Elenco: Margherita Mazzucco, Gaia Girace, Francesco Serpico, Giovanni Amura, Gennaro De Stefano, Federica Sollazzo, Annarita Vitolo, Luca Gallone, Valentina Acca, Antonio Buonanno, Christian Giroso, Ulrike Migliaresi, Alessio Gallo, Giovanni Buselli, Francesca Pezzella, Elvis Esposito, Rosaria Langellotto, Eduardo Scarpetta, Emanuele Valenti, Dora Romano e Alba Rohrwacher (veja + no IMDb)
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