8º PANORAMA DO CINEMA SUÍÇO | A ânsia por mudança e a imobilidade crônica
Atualizado: 19 de set. de 2020
O Panorama do Cinema Suíço, festival realizado pelo consulado da Suíça em São Paulo e o Sesc São Paulo, em parceria com a agência de cinema SWISS FILMS, chega a sua oitava edição em 2020 precisando se adaptar ao novo cenário do cinema neste momento de pandemia. Por isso, pela primeira vez, o evento é realizado de maneira online, com a exibição gratuita de 14 longas e dois programas de curtas dentro da plataforma Sesc Digital, a partir de hoje, 27 de agosto, até o dia 6 de setembro. O NERVOS destaca duas ficções que integram esta programação e conversam entre si, apesar de suas diferentes abordagens, sobre o desejo de mudar de vida, em O Vento Muda (2018), e a impossibilidade de fazer isso, em O Fim do Mundo (2019).
O Vento Muda
(Le Vent Tourne, 2018)
Vencedor do Prêmio Variety Piazza Grande no Festival de Locarno de 2018, dado pelos críticos norte-americanos que enxergaram o potencial da produção para distribuição internacional, o filme franco-suíço O Vento Muda chegou ao público brasileiro só neste ano e de forma digital, em duas ocasiões. No início de 2020, foi com o MyFrenchFilmFestival, realizado tradicionalmente virtual, e agora dentro da programação do 8º Panorama Digital do Cinema Suíço em sua primeira edição neste formato. Trata-se do quinto longa de Bettina Oberli, mas o primeiro da cineasta suíça rodado em francês, embora a diretora já tenha retornado ao alemão – outra das três línguas oficiais do país, junto do italiano – em seu mais recente trabalho Wanda, Mein Wunder / My Wonderful Wanda (2020), que circula no diferente circuito de festivais desta temporada.
O título em questão é ambientado em uma fazenda bem remota do Cantão do Jura, região próxima à fronteira com a França, que serve de cenário para uma a velha história de uma mulher casada que se encanta pelo “forasteiro” que surge como uma oportunidade de fuga de sua realidade. Se a trama já é conhecida, Oberli maneja esses clichês com simbolismos dentro do debate ambiental que sugerem à obra uma discussão maior, além do romantismo e que compreende o choque entre a idealização e o cotidiano de um estilo de vida, frente ainda a desejos humanos intrínsecos. Isso já se estabelece na dualidade exposta na epígrafe com a citação da autora inglesa Rebecca West “dividindo” as pessoas entre aquelas que só querem uma espécie de tranquilidade duradoura e as outras que preferem a inquietude de um turbilhão de emoções; O Vento Muda, porém, demonstra que essa divisão não se encontra somente entre, mas também dentro de muitas pessoas.
Assim, o público conhece o casal Pauline (Mélanie Thierry, do filme Memórias da Dor, de 2017) e Alex (Pierre Deladonchamps, de Um Estranho no Lago, de 2013) e sua exaustiva rotina ao cuidarem dessa fazenda, onde adotam um modo de vida e produção tão naturalista que, para não mais dependerem do fornecimento de energia elétrica vindo de uma usina nuclear, compram uma turbina de energia eólica para se tornarem autossuficientes. E como o título já estampa, o maquinário é também uma metáfora para a mudança que virá ao encontro deles. Ela vem, portanto, não do objeto, mas personalizada em duas figuras que passam a integrar o cotidiano deles naquele verão.
Uma delas é Galina (Anastasia Shevtsova, de Polina, de 2016), uma adolescente ucraniana da região de Chernobyl, que eles recebem na fazenda para que o ar puro do local possa ajudar a baixar seus níveis de radiação no corpo – esses programas de viagem de “desintoxicação” são comuns nos países da Europa, como pode ser visto também em um episódio da comédia norte-irlandesa Derry Girls (2018-), para ajudar no tratamento de crianças e adolescentes ainda afetados pelo desastre nuclear de 1986, na então república da União Soviética. Mas se a garota precisa daquela natureza quase intocada do pacato lugar em que mal pega Wi-Fi para se “purificar”, Pauline, por sua vez, necessita da jovialidade dela e até um pouco da sua realidade “contaminada pela modernidade” e tudo aquilo que não é orgânico, como se observa quando a mulher acompanha a jovem durante uma noite em uma boate na cidade. A outra chegada impactante é de Samuel Nieves (Nuno Lopes, ator português do longa São Jorge, de 2016, porém, mais conhecido no Brasil pelo seu papel na novela Esperança, de 2002), o engenheiro responsável pela instalação da turbina com quem ela desenvolve, primeiramente, uma repulsa logo transformada em atração sexual.
Mais do que um triângulo amoroso em si, o filme utiliza esses agentes externos para desvelar a inquietação interna da protagonista. O terreno infértil até para a pastagem de suas vacas serve como analogia para o desgaste do relacionamento dela e Alex, após 15 anos vivendo uma utopia a qual ela, diferente do marido, enxerga suas fragilidades e perdeu o interesse de continuar sustentando. Por outro lado, esses “estrangeiros urbanos” também se encantam com o “estilo rural orgânico” dali, mostrando que esse anseio pela “vida do outro” é constante e sintomático desses conflitos existenciais humanos, seja dos sonhos idealizados versus a realidade ou de planos pessoais confrontados com seus próprios desejos mais vis.
O roteiro de Oberli e Antoine Jaccoud, de Minha Irmã (2012), que teve a colaboração de Thomas Ritter e Céline Sciamma, a cineasta francesa de Retrato de uma Jovem em Chamas (2019), acaba desenvolvendo pouco os coadjuvantes ao deixar esses personagens presos aos arquétipos e simbolismos dos seus papéis nessa transformação de Pauline. No entanto, é louvável o esforço do longa em não creditar esse processo às figuras masculinas e sim à autodescoberta da protagonista. Igualmente, vale salientar o bom elenco, especialmente a atriz francesa Mélanie Thierry que tem a chance de mostrar mais seu talento ao interpretar uma mulher não tão contida quanto as que geralmente fez em sua carreira, e a fotografia de Stéphane Kuthy por exteriorizar tal conflito dela no ar idílico que permeia o filme e se contrasta com as sombras de suas desilusões, especialmente no clímax da narrativa.
Duração: 86 min | Classificação: Livre
Direção: Bettina Oberli
Roteiro: Antoine Jaccoud e Bettina Oberli, com colaboração de Thomas Ritter e Céline Sciamma
Elenco: Mélanie Thierry, Pierre Deladonchamps, Nuno Lopes, Anastasia Shevtsova e Audrey Cavelius (veja + no IMDb)
Produção: Suíça e França
> Disponível na plataforma Sesc Digital, de 28/08 (sexta) a 01/09/2020 (terça), dentro da programação do 8º Panorama do Cinema Suíço
O Fim do Mundo
(O Fim do Mundo, 2019)
Exibido na competição internacional do Festival de Locarno e na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo no ano passado, O Fim do Mundo é o segundo longa de Basil da Cunha, cineasta suíço de origem portuguesa. Desde que se mudou para a Reboleira, uma comunidade de Amadora, na região metropolitana de Lisboa, cuja grande parte da população local é de imigrantes e descendentes de cabo-verdianos, o diretor de Até Ver a Luz (2013) passou a integrar os vizinhos que viraram amigos dentro de seus curtas. Assim, esses atores não-profissionais passaram a contribuir também para a dose de realidade em sua ficção – aliás, uma realidade, tanto cinematográfica ou de vida, que não é muito diferente do cenário brasileiro.
O filme acompanha o retorno de Spira (Michael Spencer) para o bairro e todo o choque e desencanto mudo do garoto de 18 anos após ter passado oito anos em um centro de correção juvenil. Ele logo é recebido pelos antigos amigos, Giovanni (Marco Joel Fernandes) e Chanti (Alexandre da Costa Fonseca), outros jovens que tentam integrá-lo novamente dentro daquela rotina periférica, entre encontros casuais do pessoal e esquemas criminais. No entanto, o rapaz, diversas vezes, vaga distante pelas ruas, como um espectro de um menino que já perdeu sua inocência e esperança.
Por outro lado, existem outros três personagens que mexem mais intimamente com o ânimo do protagonista, a exemplo da madrasta, cuja relação guarda um ar incestuoso desde o princípio. Ocorre também um estranhamento inicial com Kikas, que gosta de impor sua imagem de chefão do local, a qual Spira desafia, gerando o principal conflito da narrativa. É por causa dele e de Iara (Iara Cardoso), uma jovem mãe solteira, que o personagem demonstra mais seu desejo piromaníaco, com a direção de Cunha transformando o fogo tanto em expressão máxima de violência como em poesia visual.
Como, para o público brasileiro não é novidade esse ambiente de violência endêmica das periferias, o espectador daqui pode sentir tanto uma identificação com a história quanto certo cansaço com tema, especialmente porque o filme partilha dessa apatia de seu protagonista, mesmo quando toma medidas drásticas, ao tratar dessa questão. De qualquer modo, trata-se de um olhar novo do cinema português e suíço para esse “submundo” que eles ignoram ter dentro de casa – lembre-se que a Suíça também é um país que recebe muitos imigrantes, inclusive os portugueses – e que coloca em debate o intenso processo de gentrificação em Lisboa, que retira moradores de suas antigas vizinhanças devido à especulação imobiliária, um contexto que também não é indiferente à realidade de tantas metrópoles brasileiras e que foi retratado pelo cinema nacional, especialmente na primeira metade da última década. Começando com um batizado e terminando em um velório, Basil faz de sua obra um relicário sobre o fim daquele mundo que ele presenciou.
Duração: 107 min | Classificação: Livre
Direção: Basil da Cunha
Roteiro: Basil da Cunha e Saadi, com colaboração de Martin Drouot
Elenco: Michael Spencer, Marco Joel Fernandes, Alexandre da Costa Fonseca, Iara Cardoso e Luisa Martins dos Santos (veja + no IMDb)
Produção: Suíça e Portugal
> Disponível na plataforma Sesc Digital, de 03/09 (quinta) a 05/09/2020 (sábado), dentro da programação do 8º Panorama do Cinema Suíço
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