SEBERG CONTRA TODOS | A fogueira que nunca deixa de queimar
Atualizado: 4 de ago. de 2021
A imagem mais impactante de Seberg Contra Todos (2019), que prenuncia e representa bem todo o drama que decorrerá depois, está logo no início do filme. Kristen Stewart na pele da biografada Jean Seberg, ainda com 17 anos, no início de sua carreira como atriz, queima na fogueira como a Joana D’Arc nas filmagens de Santa Joana (1957) de Otto Preminger. A situação a marcaria física e psicologicamente para o resto da vida, mas o longa de Benedict Andrews não se debruçará sobre o abuso moral nos sets de Hollywood tanto quanto o recente Judy (2019) e sim na perpetuação de atitudes semelhantes contra ela, simbolizadas imageticamente nesta abertura.
Se aquela cena foi rodada no final dos anos 1950, ainda sob a sombra da caça às bruxas do macarthismo em Hollywood no período inicial da Guerra Fria, como visto em Trumbo: Lista Negra (2015), uma década depois as políticas de perseguição de J. Edgar Hoover, diretor do FBI, faziam novas vítimas. Neste ínterim, Seberg tinha se tornado a musa da Nouvelle Vague francesa ao estrelar Acossado (1960) de Jean-Luc Godard e adquirido o reconhecimento em sua terra natal. Mas a produção exibida no último festival de Veneza se concentra no momento em que o ativismo social da artista a colocou na mira do serviço de investigação, que, naquela época sessentista, realizava espionagens e utilizava meios escusos para desestabilizar os movimentos negros nos Estados Unidos, respingando nela a partir do momento em que cruza o caminho do ativista de direitos civis Hakim Jamal (Anthony Mackie) e passa a apoiar mais ostensivamente a causa.
Assim, o público é igualmente introduzido a outra figura, mas ficcional: a do agente Jack Solomon (Jack O'Connell se esforçando com o que pode), especialista técnico em som, que passa a integrar a equipe de Carl Kowalski (Vince Vaughn) e espioná-la como sua primeira missão em Los Angeles, onde vive recém-casado com a estudante de medicina Linette (Margaret Qualley, sem muito o que fazer em papel apagado). Joe Shrapnel e Anna Waterhouse, roteiristas de Consequências (2019), utilizam o personagem como ferramenta narrativa para apresentar informações da carreira pregressa da atriz, já que a trama começa no turbulento mês de Maio de 1968 em Paris, onde ela vivia com o segundo marido Romain Gary (um terno Yvan Attal) e o filho Diego Gary (Gabriel Sky). No entanto, o feitiço acaba se virando contra o feiticeiro, a partir do momento em que este olhar masculino se torna o filtro da percepção da plateia sobre Seberg, se acentuando quando o roteiro traz uma romantização dessa relação do espião com seu alvo e piorando com a condescendência do filme com quem foi um dos algozes do destino daquela mulher.
Essas escolhas narrativas minimizam o erro e perpetuam justamente aquilo que se tornou uma desgraça na vida artista, ao se tornar objeto de rumores na imprensa, originários de uma campanha de difamação governamental não-oficial, imbuídos de um viés preconceituoso e conservador que mancharam a sua imagem público e arruinaram a sua saúde mental. Se a dupla de roteiristas já trabalhou com a temática do racismo em outra cinebiografia, a de Jesse Owens, Raça (2016), e faz o mea culpa final sabendo da estranheza contemporânea que é ver esta problemática ser tratada através do protagonismo branco, ao justificar com o contexto da época, o mesmo não pode se dizer sobre a abordagem do machismo que cercava a “musa”, mesmo quando há um esforço para liga-lo com situações cotidianas de coadjuvantes femininas pouco desenvolvidas. E de certo modo, esses deslizes nas relações de gênero também podem ser observados em Una (2016), o primeiro filme de Benedict Andrews, diretor com ampla experiência no teatro.
Se lá, o cineasta tentava dar um dinamismo ao material teatral daquela trama sobre as consequências do abuso sexual de uma menor, agora ele encontra uma mise-en-scène mais livre na parceria com a diretora de fotografia Rachel Morrison. Ainda assim, o realizador australiano filma com o formalismo hollywoodiano visto em tantas outras cinebiografias, pendendo a chance de flertar justamente com o estilo que marcou a carreira da biografada, nunca alcançando a ousadia estética da primeira cena da fogueira. A sensação de que muito mais poderia ser explorado, visualmente e narrativamente, a partir da história de Jean Seberg paira sobre a obra que, no geral, é correta, ecoa tensões do presente e serve como aperitivo para o público realmente se aprofundar na biografia dela.
O ponto mais instigante de Seberg está na sua atriz principal e na sua “pequena escolha” revolucionária para os padrões atuais do gênero. Kristen Stewart não opta pela mímica ou imitação da pessoa/personagem real, o que pode causar estranheza aos saudosistas, mas há aquela característica intrigante nela que cai como uma luva ao papel dessa mulher cercada pelo fogo. Se o texto nem sempre a ajuda, são os seus olhares que melhor revelam a chama daquilo que o filme não é capaz de dizer.
Seberg Contra Todos (Seberg, 2019)
Duração: 102 min | Classificação: 16 anos
Direção: Benedict Andrews
Roteiro: Joe Shrapnel e Anna Waterhouse
Elenco: Kristen Stewart, Yvan Attal, Gabriel Sky, Anthony Mackie, Zazie Beetz, Jack O'Connell, Margaret Qualley, Vince Vaughn, Colm Meaney, Stephen Root, Laura Campbell e Jade Pettyjohn (veja + no IMDb)
Distribuição: Cinecolor Films Brasil