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Foto do escritorNayara Reynaud

ENTRE FACAS E SEGREDOS | O tabuleiro americano

Atualizado: 28 de fev. de 2021


Ana de Armas e Daniel Craig em cena do filme Entre Facas e Segredos (Knives Out, 2019), de Rian Johnson | Foto: Divulgação (Lionsgate / Paris Filmes)

Tão logo o espectador se dá conta ao observar o cenário, propositadamente bem detalhado pela câmera de Rian Johnson, Entre Facas e Segredos (2019) já brinca em seu texto que aquela mansão parece um tabuleiro de Detetive. Bem como a apresentação dos personagens, com o nome na tela, que se assemelha às cartelas do jogo dispostas para o público, tudo adquire certo tom cômico neste mistério que bebe muito da influência de Agatha Christie.

Mais conhecido por Star Wars: Os Últimos Jedi (2017) e Looper: Assassinos do Futuro (2012), o cineasta retoma a tendência dos seus primeiros longas, A Ponta de um Crime (2005) e Vigaristas (2008), de recapitular um gênero há muito tempo popular e agora relegado, atualizando à sua própria maneira. Neste seu recente trabalho, as velhas tramas e clichês de mistério servem de base para a discussão sobre os novos tempos em que hábitos passados permanecem. Assim, se a produção soa quase como uma paródia do gênero, embora possa utilizar um falso telefilme de suspense da Hallmark tanto para fazer piada quanto para fins narrativos, ela igualmente funciona como sátira dos tipos que apresenta nesta história.

Isso já começa na própria escolha da vítima: Harlan Thrombey (Christopher Plummer) nada mais é do que um famoso escritor de livros policiais e de mistério. Quando o excêntrico e abastado autor morre justamente na reunião familiar para comemorar o seu aniversário, com todos os seus herdeiros presentes, tem-se o cenário típico de suas obras, perfeito para levantar-se a clássica pergunta “Quem matou?”. Uma questão, aliás, que permanece com a plateia, mesmo se revelando bem cedo o que aconteceu com ele.

A narrativa começa com a governanta Fran (Edi Patterson) encontrando o corpo do patrão, no que é atestado como uma cena de suicídio, e logo pula uma semana, quando todos os familiares são ouvidos pela polícia, na vista do tenente Elliott (LaKeith Stanfield) e o soldado Wagner (Noah Segan, representando os fãs do gênero), na companhia do renomado detetive particular Benoit Blanc (Daniel Craig, nas vezes de um Hercule Poirot sulista). Desta maneira, o público é apresentado aos Thrombeys, clã formado pela “filhinha do papai” Linda (Jamie Lee Curtis), o genro falastrão Richard Drysdale (Don Johnson) e o protegido neto playboy Ransom (o "Capitão América" Chris Evans); pelo inseguro filho que administra sua editora, Walt (Michael Shannon), a nora Donna (Riki Lindhome) e o neto adolescente, ativista virtual de extrema direita, Jacob (Jaeden Martell); e pela “guru de lifestyle” Joni (Toni Collette), viúva de seu falecido filho, e a neta estudante liberal Meg (Katherine Langford); além de sua velha mãe Wanetta (K Callan). E também à Marta Cabrera (Ana de Armas, que finalmente ganha um papel de maior destaque), a enfermeira que se tornou sua amiga e quase um membro da família, cujo olhar é o que guia o espectador por esta intrincada trama.

Trata-se de um filme no qual o êxito depende essencialmente do talento e da presença de espírito do seu elenco. E este se diverte aqui, interpretando tipos intencionalmente caricaturais neste jogo familiar, em que cada um tem seus pequenos, mas certeiros momentos para brincar – Jacob, talvez, seja o único que carecia de mais espaço para algumas jogadas.

Mas também é uma obra que necessita de um maestro que coordene essas peças. Em sua narrativa espiral, que vai colocando uma lupa em cada detalhe do mistério em si e de seus envolvidos, Rian Johnson traça, por exemplo, pequenas diferenças das versões apresentadas da festa, na simples imagem de quem está ao lado do patriarca na hora do parabéns, ou especialmente na dissonância entre os pontos de vista apresentados nas lembranças deles e nas suas falas nos depoimentos, nesta primeira parte do longa. Seu estilo como roteirista também se manifesta na direção, novamente primando por planos fechados que destacam seus personagens e um sorrateiro contra-plongée que cabe muito bem à proposta.

Sem revelar muito do que se desenrola depois deste primeiro inquérito, para não dar spoilers da trama envolvente, mesmo sem ser totalmente surpreendente, o que se destaca em Entre Facas e Segredos é a forma como o cineasta utiliza a narrativa e os clichês do gênero para revelar uma discussão mais profunda do que o longa aparenta sobre a “América” atual. Surge, então, um subtexto político através de Cabrera quanto à questão da imigração nos Estados Unidos, que acaba atravessando a superfície e se transformando no principal discurso da obra. Existe uma ideia de posse delineada desde o primeiro plano, que toma forma ao longo da história até ser invertida em seu final, com o filme desacreditando o conceito de pertencimento e propriedade, em uma metáfora da falácia do chavão nacionalista norte-americano de que aquela terra sempre pertenceu aos “americanos” – sob este pensamento, apenas os colonizadores, e não os nativos que lá já viviam ou os imigrantes que ajudaram a construir aquela nação.

Por isso, é muito pertinente que não se revele a verdadeira nacionalidade da enfermeira, pois, além da piada recorrente, a personagem fica como representação de todos e quaisquer povos latinos, na descrição do acolhimento dado pelo governo e a população dos EUA aos vizinhos deste grande continente chamado América. Isso significa receber tanto o discurso de ódio de uns quanto a amabilidade hipócrita de outros, em um comentário sociopolítico que não alivia nenhum dos lados da era Trump ou Obama, além da traiçoeira e cínica ajuda no meio do caminho. A resposta dada pela imigrante, a única personagem cuja composição traz nuances frente às caricaturas ao seu redor, e consequentemente pelo filme, é a sua pura humanidade, pois, ainda que dominada pelo medo e pela culpa, as atitudes de Marta são essencialmente guiadas pela sua natural incapacidade de mentir e sua inerente bondade.

 

Entre Facas e Segredos (Knives Out, 2019)

Duração: 130 min | Classificação: 14 anos

Direção: Rian Johnson

Roteiro: Rian Johnson

Elenco: Ana de Armas, Daniel Craig, Chris Evans, Jamie Lee Curtis, Michael Shannon, Don Johnson, Toni Collette, LaKeith Stanfield, Christopher Plummer, Katherine Langford, Jaeden Martell (Jaeden Lieberher), Riki Lindhome, Edi Patterson, Frank Oz, K Callan e Noah Segan (veja + no IMDb)

Distribuição: Paris Filmes

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