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Foto do escritorNayara Reynaud

MORTO NÃO FALA | Exame de um Brasil cadavérico

Atualizado: 28 de fev. de 2021


Daniel de Oliveira em cena do filme de terror nacional Morto Não Fala (2018) | Foto: Divulgação (Casa de Cinema de Porto Alegre)

Um homem que, por lidar tanto com a morte cotidianamente em seu trabalho, também morre aos poucos em sua própria vida. Este é o retrato de Stênio, plantonista noturno do Instituto Médico Legal (IML) de uma violenta metrópole como São Paulo – embora as filmagens em Porto Alegre tragam um sotaque gaúcho aqui e ali destoantes –, que tem o dom de falar com os mortos enquanto “prepara” os seus corpos no necrotério, algo que lhe traz graves consequências quando ele ultrapassa os limites entre a vida e a morte. O personagem interpretado com a habilidade habitual de Daniel de Oliveira é o protagonista de Morto Não Fala (2018).

Trata-se do primeiro longa de Dennison Ramalho, nome importante do terror nacional por seus curtas-metragens Amor Só de Mãe (2002) e Ninjas (2011). Aliás, tal qual este último trabalho, o esperado début do diretor neste formato é uma nova adaptação de um dos contos de Marco de Castro, jornalista policial que traduziu sua experiência em sangrentos plantões noturnos pela capital paulista e região na forma de histórias do gênero. Mas se o policial atormentado pela culpa da outra trama do escritor rendeu um gore explícito e incômodo, Morto Não Fala (2004) se transforma em um horror mais palatável para as plateias em geral, apesar do estado dos cadáveres que cruzam o caminho de Stênio.

Em ambos os filmes, Ramalho repete a estratégia de Castro em utilizar a violência do gênero como um resultado natural do ambiente em que o protagonista está inserido, social e profissionalmente. Morador da periferia, o pai de dois filhos teme que o garoto mais velho (Cauã Martins, enquanto Annalara Prates faz a caçula) seja conquistado pelo flerte da criminalidade engendrada neste espaço à margem da sociedade, ao mesmo tempo em que vê as consequências dessa violência urbana diariamente no trabalho. O comentário social é traçado nos constantes corpos negros furados a bala que indicam a rixa entre facções e a repressão policial, mas o colapso gerado por um deslizamento e a própria atitude machista do funcionário ao descobrir uma falha da sua esposa Odete (Fabiula Nascimento) demonstram outras facetas violentas do cotidiano periférico.

O ato impensado joga este homem em uma espiral de tormenta psicológica pela culpa que se materializa nas manifestações sobrenaturais que assombram sua família e a inocente vizinha que lhe ajuda, Lara (Bianca Comparato), a filha do dono da padaria (Marco Ricca) e cuja mãe se encontra internada no hospital. Uma interessante alegoria do roteiro bem costurado de Dennison e Claudia Jouvin sobre o sexismo, embora a proposição de vingança imortal da mulher possa reverberar ideias errôneas neste sentido.

O cineasta se vale de efeitos especiais práticos e digitais, nem sempre assertivos, mas compreensíveis para o nível da produção, para marcar a imobilidade dos cadáveres em contraste com suas bocas falantes, segredando alguns detalhes de sua vida pré-morte, mas eles se mostram mais eficientes na ótima cena do fogão, por exemplo. Se outras sequências não são de completo terror, a direção injeta suficiente tensão com elementos muito reconhecíveis da cultura brasileira, como a expulsão de demônios do evangelismo televisivo ou um simples cerol.

Os elementos religiosos, especialmente essa presença maciça de diversas igrejas neopentecostais no contexto periférico, é explorado também em seus trabalhos anteriores. Ramalho, porém, não faz disso uma crítica cega; ao contrário, faz uso desse imaginário cristão dentro da própria narrativa, seja no pedido por um sacrifício de sangue inocente como uma espécie de holocausto para expiação de seus pecados ou na longa penitência que marca a trajetória do protagonista. Seu caminho de libertação, porém, fica aberto no final do filme para que Stênio possa continuar com a sua sina em uma possível série de TV, que era a ideia do projeto original.

Uma nova vida

A atriz Bianca Comparato, o cineasta Dennison Ramalho e o ator Daniel de Oliveira na coletiva de imprensa do filme de terror Morto Não Fala (2018), em São Paulo, no dia 1º de outubro | Foto: Nayara Reynaud

A atriz Bianca Comparato, o cineasta Dennison Ramalho e o ator Daniel de Oliveira na coletiva de imprensa do filme de terror Morto Não Fala, em São Paulo, no dia 1º de outubro | Foto: Nayara Reynaud

Dennison Ramalho e Marco de Castro conheciam vagamente um ao outro por causa de uma lista de e-mails (mailing list) de fãs de filmes de terror dos primórdios da internet, na década de 1990. Mas somente anos depois, o primeiro viria a conhece o trabalho literário do outro, um jornalista que transformou a sua pesada experiência como repórter policial noturno no Diário de S. Paulo, que o obrigou a tirar licença médica por ser diagnosticado com depressão, em contos ficcionais do gênero publicados em seu antigo blog “Casa do Horror” – enquanto os casos reais iam para a página “Desgraceira” –, de onde tiraria inspiração para o curta Ninjas e o projeto de Morto Não Fala, que, a princípio, estava previsto para ser uma série na Globo. O cineasta contou toda a história da origem da produção na coletiva de imprensa do filme, em São Paulo, no último dia 1º, explicando que a ideia ficou em discussão por um ano na emissora, até que o realizador Guel Arraes sugerisse que fosse lançado, primeiro, o longa para sentir a resposta do público e reformular a atração televisiva a partir dali – até por isso, o final aberto, argumenta o diretor e roteirista que imagina que ela seria “uma série de redenção desse erro ético grave” do protagonista.

Stênio é vivido por Daniel de Oliveira, que admitiu aos jornalistas como se impressiona como um filme de terror “ganha essa atmosfera depois na tela”, mas que as filmagens não eram tão assustadoras assim. “O único jeito de sobreviver ao set” é descontraindo da tensão inerente da narrativa, defendeu Bianca Comparato, que interpreta a vizinha Lara, enquanto o ator relembrava o susto que deu na equipe, demorando um pouquinho para submergir na cena do enterro. Neste sentido, Ramalho também lembrou da ajuda do preparador de elenco infantil Márcio Miguel, que já trabalhou em outra obra nacional do gênero, As Boas Maneiras (2017), já que não havia trabalhado com crianças antes e atores mirins Cauã Martins – que estava igualmente no longa de Juliana Rojas e Marco Dutra – e Annalara Prates tinham momentos assustadores e/ou dramáticos importantes no decorrer da trama.

Outra preocupação do cineasta foi quanto ao desafio de contrariar o título e fazer os mortos falarem, pensando em várias formas de fazer isto. “Queria que os cadáveres não respirassem e tivessem que juntar toda a mínima energia residual para dizer essas últimas palavras para esse cara”, revelou o Dennison para explicar a escolha por animar o rosto deles. Mas a equipe esteve em contato com cadáveres reais na pesquisa nos necrotérios de São Paulo e, especialmente, Porto Alegre, onde os atores também fizeram uma visita. “O cheiro foi o que marcou para a minha personagem”, recordou Bianca, que não teve coragem de entrar na sala, conforme segredou o colega Daniel, que chegou a observar como é feita a costura dos corpos.

Segundo o diretor, as histórias ouvidas lá foram impressionantes e o inspiraram muito, já que há nestes profissionais o peso por uma função muito marginalizada na sociedade, apesar de essencial. Também foi possível atestar um fato que ele retrata no longa com os corpos sendo majoritariamente de jovens negros periféricos e o estado depauperado das condições de trabalho, além de outro comentário no desenvolvimento do protagonista sexista. Para Comparato, foi o terror com esse lado social que a interessou no projeto que coloca o protagonista como fruto de uma sociedade violenta e suscita “não só o entretenimento, mas uma reflexão para onde estamos indo”.

O caminho do filme, por sinal, já passou por diversos festivais de cinema fantástico pelo mundo, porém, surpreendeu seu criador por ter ido também a grandes festivais não-especializados como de Roterdã e o BFI. No entanto, Dennison torce claramente para que ela desemboque na TV, como pretendiam antes, ou em uma rota alternativa que os novos tempos permitem, como o streaming. “Esperamos que encontremos o lugar da série lá [no Globoplay], se ela acontecer”, clamou o diretor ao final da conversa com os jornalistas.

 

Morto Não Fala (2018)

Duração: 110 min | Classificação: 16 anos

Direção: Dennison Ramalho

Roteiro: Dennison Ramalho e Claudia Jouvin, com supervisão de Jorge Furtado e George Moura, baseado no conto “Morto Não Fala” de Marco de Castro

Elenco: Daniel de Oliveira, Fabiula Nascimento, Bianca Comparato, Marco Ricca, Cauã Martins e Annalara Prates (veja + no IMDb)

Distribuição: Pagu Pictures

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