ERA UMA VEZ EM... HOLLYWOOD | Um conto de fadas tarantinesco
Atualizado: 27 de fev. de 2021
Era uma vez, uma região de Los Angeles onde se firmou a maior indústria do cinema no mundo, graças à materialização em grande escala nas telas de diversos “Era uma vez...”, sejam das narrativas históricas ou dos contos de fadas, que fizeram de Hollywood a Fábrica de Sonhos. Cinéfilo inveterado que se tornou um cineasta irreverente na sua reverência à Sétima Arte, Quentin Tarantino evoca tanto a história quanto o imaginário sobre o local, as fantasias que alimentam o público e os profissionais que lá trabalham e galgam por um espaço, além da referência a Sergio Leone, quando intitula seu nono filme como Era Uma Vez em... Hollywood (2019).
Uma fábula sobre a terra onde sonho e realidade se misturam, o longa cruza personagens fictícios com personalidades reais ao acompanhar as aventuras hollywoodianas pelos estúdios de filmagem e arredores dos amigos Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) e Cliff Booth (Brad Pitt), respectivamente, um astro de faroestes televisivos em decadência e seu inseparável dublê, motorista e faz-tudo. A dupla criada pelo roteirista e diretor, no entanto, é vizinha da atriz em ascensão Sharon Tate (Margot Robbie) e seu marido, o já célebre cineasta franco-polonês Roman Polanski (Rafal Zawierucha), na Cielo Drive, em pleno ano de 1969. Se a simples menção disso já diz muito para o público norte-americano, a plateia brasileira pode perder o contexto se não viu as diversas matérias sobre os 50 anos, que se completaram no último dia 9 de agosto, do chocante assassinato da artista e de seus amigos pelos membros da “Família Manson”, como eram conhecidos os seguidores do guru hippie Charles Manson (Damon Herriman) – embora uma pesquisa na internet sempre ajude a compreender os diversos detalhes apresentados na obra.
A escolha da data, porém, não se deve apenas à trágica efeméride, mas ao significado dela como uma espécie de marco do fim de uma era, em diversos sentidos. O primeiro deles, obviamente, diz respeito aos últimos momentos da Era de Ouro de Hollywood, enquanto o cinema autoral do próprio jovem Polanski trazia a vanguarda europeia que influenciaria os cineastas da Nova Hollywood da década de 1970. Contudo, a escolha dos protagonistas diz respeito a um aspecto específico dessa transformação.
A narrativa começa no início de 1969, traçando o enfraquecimento do faroeste através da carreira de Dalton, que se vê atormentado ao perceber que o seu auge já se foi. O antes astro da série “Bounty Law” não conseguiu fazer bem a transição para o cinema e tenta a chance novamente na TV, com participações em seriados como The F.B.I. (1965-) – DiCaprio é introduzido digitalmente na produção, assim como no filme Fugindo do Inferno (1963) – e interpretando um vilão no piloto de uma nova atração do gênero, onde tem seu duelo de gerações com uma atriz mirim (Julia Butters roubando a cena como a jovem praticante do Método). Igualmente, está incluso aí o caráter antropofágico de Hollywood, que constantemente renova suas estrelas, descartando as anteriores, como expõe o agente interpretado por Al Pacino.
Naquele período em que o diretor de 56 anos era apenas uma criança, o faroeste norte-americano que tanto adorava tinha deixado para trás a sua fase de ouro, perdendo espaço até no seu reduto televisivo, enquanto as produções italianas chamadas de spaguetti western se mantinham nos cinemas. Um sintoma visível deste declínio está no fato do Rancho Spahn, que serviu de locação para as filmagens de longas e séries como Bonanza (1959-73), ter se tornado tão obsoleto que foi “invadido” pelo grupo de Manson, a representação da contracultura dos anos 1960. Por isso, quando a jovem hippie Pussycat (Margaret Qualley) leva Booth lá, a ótima e tensa sequência serve não apenas para apresentar a estranha Família que tinha feito dali seu lar, mas também o significado do local para o visitante e o audiovisual norte-americano – e a escolha de ser Cliff a visitar o lugar, tentando alertar o dono (Bruce Dern), também remete ao fato do dublê e cuidador dos cavalos Donald "Shorty" Shea ter sido assassinado pelo tal bando naquele mesmo mês de agosto.
O mundo fora das telas também passava por uma grande transformação desde o ano anterior e a sociedade norte-americana estava em ebulição por conta de questões políticas e sociais como os protestos contra a Guerra do Vietnã e a luta por igualdade racial e de gênero que marcou aquela década. Assim, o cineasta enfatiza detalhes que também simbolizavam a aura de uma época que iria se esvaecer. Exemplos são os aviões da Pan Am, companhia aérea americana de grande status no período, ou as caronas a estranhos – a série documental Conversando com um Serial Killer: Ted Bundy (2019) comenta como os assassinatos cometidos pela Família Manson e o fenômeno que se seguiu dos assassinos em série mudou esta e outras inocentes características da rotina de cidades e de um país que se julgava pacato.
Outro elemento é o uso do rádio nas diversas sequências dos carros percorrendo as ruas e avenidas de Los Angeles, funcionando além da clara ambientação do período. Todos os personagens escutam a KHJ AM, estação local que estava no ápice de seu sucesso, ao adotar o formato Boss Radio e uma programação adulto contemporânea, executando as músicas mais tocadas no momento, mas que igualmente teria o fim de sua era com a vinda das FM’s, anos mais tarde. Entre alguns clássicos que perduraram até hoje, muitos hits não óbvios cujo sucesso foi somente momentâneo, diversos jingles e locuções dos famosos disque-jóqueis da rádio – infelizmente, não legendados nas cópias brasileiras –, Tarantino joga referências musicais e cinéfilas – a supervisora musical Mary Ramos destrincha alguns desses detalhes da trilha sonora em uma reportagem da revista Time –, marca as elipses temporais e aponta o momento no qual sua história deliberadamente está fora do seu tempo, com o uso de uma demo de Out of Time, dos Rolling Stones, só lançada em 1975 – como alerta a análise do Jordan Hoffman no The Guardian.
É quando se manifesta mais claramente o seu interesse pelo revisionismo histórico, aplicado em trabalhos recentes dele, como Bastardos Inglórios (2009) – que, aliás, é remetido visualmente nas diversas referências que Quentin faz a sua obra e a si mesmo, desde a figura de um dublê como em À Prova de Morte (2007) até ao cinema do qual é dono atualmente, o New Beverly Cinema, que na trama aparece como cenário de uma première de um filme erótico. Ao colocar, no final, diversos temas de Maurice Jarre para o faroeste de John Huston, Roy Bean – O Homem da Lei! (1972), o cineasta se coloca como o protagonista vivido por Paul Newman e aplica a sua visão de justiça nessa comunidade, mas de forma cinematográfica. Tratando-se do realizador, já é possível imaginar que ela vem de maneira violenta, mas Era Uma Vez em... Hollywood é bem contido neste sentido e até versa sobre esta questão através de seus diálogos: o agente tece elogios de início a esse estilo sanguinolento, enquanto, depois, uma jovem espectadora culpa a televisão por ensiná-la a replicá-la, para, finalmente, o diretor utilizá-la em seu clímax, de modo a defender que a violência na arte seria um escape para não usá-la na vida real.
O que, talvez, seja mais questionável é a sua escolha de justiceiros e heróis neste seu conto de fadas, implicando em um possível discurso misógino e/ou de superioridade norte-americana. Vide a repercussão, inclusive com a família do mestre das artes marciais, sobre o retrato de Bruce Lee (Mike Moh) no longa. Agora, se o descendente de italianos e grande admirador do cinema de seus antepassados zoa justamente a produção de lá, revela-se que o tom de paródia aplicado por Tarantino pode mascarar suas homenagens tanto quanto seus comentários errôneos.
Até porque em uma estrutura narrativa repleta de divagações, histórias paralelas, dois locutores que aparecem pontualmente, fluxos temporais que incluem um flashback dentro de um flashback e um caráter alucinógeno em um momento-chave, o espectador pode questionar a natureza das lembranças e dos pontos de vista apresentados. Esse ritmo propositadamente irregular de uma trama repleta de enxertos pode não ser perfeita em todos os seus movimentos e deve desagradar parte da plateia que prefere o seu cinema mais enérgico. Contudo, o modo como o filme caminha lentamente para o seu terceiro ato torna a tensão muito mais latente para o público que percebe a contagem regressiva para o fatídico momento na Cielo Drive.
Na realidade, o cineasta faz deste o seu trabalho mais carinhoso, seja pelo seu olhar nostálgico à Hollywood ou pela homenagem que presta, a sua maneira, à Sharon Tate, tendo inclusive o apoio da irmã dela, Debra. No retrato que ele e Margot Robbie fazem da atriz morta no alvorecer de uma carreira que poderia ser brilhante – um sentimento coletivo parecido ao que se viu aqui no Brasil, com o assassinato da Daniella Perez –, ela tem pouco tempo de fala e sua vida é apresentada pela boca dos outros personagens, com o interesse de manter a sua imagem angelical e essa aura sobre alguém que queríamos ver e ouvir mais nas telas. No entanto, a personagem ganha o “seu momento” quando vai a uma sessão de Arma Secreta contra Matt Helm (1968) para assistir a si mesma na comédia, e ela e o espectador veem a própria Sharon e não a sua intérprete na projeção.
Se o ato satisfaz o seu ego, como Dalton tem o seu saciado com um elogio, o mérito da obra está em não transformar ambos em meros artistas egocêntricos, mas em duas pontas opostas dos sonhos – e desilusões – dos quais Hollywood é feita. Cinco décadas depois, em um cenário externo tão conturbado quanto o interno, onde o movimento Me Too expõe os pecados sexuais dentro da indústria do entretenimento e de outras áreas, pode ser que estejamos vivendo outro fim de uma era, tal qual 69, novamente de perda da inocência como apontado na citação à Tess dos D'Urbervilles (1891), livro de Thomas Hardy que Tate realmente indicou para o marido, que o adaptou depois em Tess – Uma Lição de Vida (1979). Assim, a melancólica versão de José Feliciano para California Dreamin' acompanha o entardecer daquela trágica noite em Los Angeles, mas os letreiros dos restaurantes se recusam a deixar a escuridão dominá-la. Da mesma maneira, naquele que pode ser seu penúltimo filme, Tarantino usa o poder do cinema para evitar o crepúsculo de seus deuses, dando ao menos a promessa de mais um amanhecer a eles.
Era Uma Vez em... Hollywood (Once Upon a Time ... in Hollywood, 2019)
Duração: 161 min | Classificação: 16 anos
Direção: Quentin Tarantino
Roteiro: Quentin Tarantino
Elenco: Leonardo DiCaprio, Brad Pitt, Margot Robbie, Emile Hirsch, Margaret Qualley, Timothy Olyphant, Julia Butters, Austin Butler, Dakota Fanning, Bruce Dern, Mike Moh, Luke Perry, Damian Lewis, Al Pacino, Nicholas Hammond, Samantha Robinson, Rafal Zawierucha, Lorenza Izzo, Costa Ronin, Damon Herriman, Lena Dunham, Madisen Beaty e Mikey Madison (veja + no IMDb)
Distribuição: Sony Pictures