KING LEAR | Um Reino não tão Unido assim
Atualizado: 27 de fev. de 2021
A atemporalidade da obra de William Shakespeare é sempre louvada, não só em elogios, mas nas inúmeras adaptações de suas peças, com as tramas trazidas para contextos mais contemporâneos. Se nem sempre se vê com bons olhos essa modernização dos clássicos, como o Romeu + Julieta (1996) de Baz Luhrmann, exercícios do tipo são a comprovação de que o texto do dramaturgo inglês se mantém sempre atual. É o caso de King Lear (2018), telefilme de Richard Eyre, coproduzido pela Amazon e a BBC, e que concorre a um Emmy na categoria.
O diretor de Notas Sobre um Escândalo (2006) e Um Ato de Esperança (2017) já dirigiu uma montagem de Rei Lear (1606) no teatro e chegou a ter a peça como pano de fundo para outro telefilme estrelado por Anthony Hopkins, ao lado de Ian McKellen, O Fiel Camareiro (2015). Aqui, o cineasta leva o texto original shakespeariano de uma Grã-Bretanha antes da invasão romana para a Londres atual, ainda que a ambientação mescle locais históricos da capital britânica como a Torre de Londres e moderníssima Torre Gherkin e carros de última geração já na abertura. Neste vácuo temporal, surge uma família real bem diferente do classicismo da peça ou da opulência do clã no Palácio de Buckingham, já que o figurino e a cenografia lhe dão um aspecto militarizado.
O resultado é uma distopia não tão longe da realidade britânica atual, não em termos da realeza, mas de seu conturbado ambiente político, bem ao estilo da minissérie Years and Years (2019), outro trabalho com Emma Thompson no elenco. No longa, a atriz encarna Goneril, a filha mais velha de Lear (Anthony Hopkins), Emma Watson interpreta Regan e Florence Pugh faz a caçula Cordélia, chamadas por seu patriarca e rei quando este decide dividir seu reino entre elas. Declaradamente, Eyre sublinha esta partilha que desencadeia toda a tragédia do clássico para um subtexto contemporâneo, dizendo muito sobre um Reino Unido que se encontra dividido após o plebiscito do Brexit e que não encontra uma unidade nas suas próximas decisões enquanto nação “independente”.
Há tanto o paralelo de uma proposta errada desencadeando uma série de acontecimentos que levam os personagens e o reino ao declínio quanto os detalhes que remetem aos desafios de um país em conflito com sua multirracialidade, a exemplo do cenário de um acampamento que se assemelha aos dos refugiados ou do casting, incluindo atores negros nos papéis de Rei da França (Chukwudi Iwuji), Duque da Borgonha (Simon Manyonda) e do maquiavélico Edmund (John Macmillan), que resolve se vingar de maneira sórdida por ser preterido como filho ilegítimo do Conde de Gloucester (Jim Broadbent) e como mestiço. Mais ainda, a figura do Rei Lear evoca o totalitarismo que ressurge nos dias de hoje em todo o mundo. Enquanto as irmãs casadas e de olho no seu quinhão de terra e poder tecem diversas loas à sua figura, a caçula Cordélia defende que suas atitudes são suficientes para provar seu amor por ele, falhando ao saciar o ego insaciável de um pai governante, para quem a falta de elogio se torna uma ofensa.
Hopkins, que já interpretou o papel de 1986 a 1987, em uma montagem da National Theatre em Londres, constrói um Lear tão asquerosa a princípio, que a decisão de Goneril e Regan em não acolher o pai com sua gigante e desordeira tropa não parece um ato pérfido delas, cujas atitudes vis se revelam mais à frente. No entanto, sua interpretação indicada ao SAG Awards é capaz de trazer ao longa da jornada do personagem, toda a decadência desse governante, pai e, antes de tudo, homem, entre o orgulho, a demência, a loucura e a tristeza. No resto do elenco, Macmillan ganha evidência como Edmund que pontua a trama para o espectador, com Pugh tendo destaque nas poucas cenas que esta Cordélia moderna tem nesta versão de 115 minutos da peça de quatro horas e Thompson recebendo seu momento na discussão com o pai que deixa subentendido as mágoas escondidas por tantos anos em Goneril. Por outro lado, Watson não consegue dar dimensionalidade à uma vilanesca Regan e Andrew Scott pesa a mão em seu Edgar, filho legítimo do Conde e irmão injustiçado pelo bastardo.
Eyre traz ideias interessantes, como na paleta de cores e fotografia de Ben Smithard que vão se tornando cada vez mais monocromáticas no decorrer deste declínio coletivo, mas o anacronismo proposto pelo cineasta nem sempre funciona na prática: Lear como mendigo em um centro comercial é certeiro, mas o duelo fraterno ao estilo UFC não tem nem a mesma eficiência que Guy Ritchie aplica em seus filmes de época. A sequência vem em um terceiro ato apressado, que atesta a superficialidade dada a boa parte dos coadjuvantes no tratamento do roteirista e diretor. Mas ainda que perca a profundidade shakespeariana, King Lear revela nosso papel como espectadores desses reinos que vão se arruinando.
King Lear (King Lear, 2018)
Duração: 115 min | Classificação: 14 anos
Direção: Richard Eyre
Roteiro: Richard Eyre, adaptado da peça “Rei Lear” de William Shakespeare
Elenco: Anthony Hopkins, Emma Thompson, Emily Watson, Florence Pugh, Jim Broadbent, Jim Carter, John Macmillan, Andrew Scott, Tobias Menzies, Anthony Calf, Karl Johnson, Christopher Eccleston e John Standing (veja + no IMDb)
Plataforma: Amazon (streaming, mas o título não está disponível no Brasil)