A LISTA DE SCHINDLER | Repetindo o filme para não repetir a História
Atualizado: 26 de fev. de 2021
Em 1993, Steven Spielberg lançava mais um blockbuster no verão norte-americano, o memorável Jurassic Park: O Parque dos Dinossauros, que iniciaria uma trilogia – e depois franquia – de sucesso. Mas ainda nos 45 minutos do segundo tempo daquele ano, o famoso cineasta investiria em um caminho totalmente contrário em termos de narrativa, estética e propósitos com A Lista de Schindler (1993). Mesmo tendo ótimos resultados de bilheteria para o seu escopo e o grande feito de ter conquistado 7 Oscars – Melhor Filme, Diretor, Roteiro Adaptado, Fotografia, Direção de Arte, Edição e Trilha Sonora –, a produção tem como principal fruto o legado de conhecimento ou não-esquecimento sobre um período tenebroso e transformador na História da Humanidade.
Inspirado no caso real de Oskar Schindler, um industrial alemão que era membro do Partido Nazista e, com sua influência, dinheiro e astúcia, teria salvo 1.200 judeus do extermínio durante a II Guerra Mundial, o longa se baseou no livro homônimo de Thomas Keneally. Ao completar 25 anos, o filme que retrata a gradual perseguição nazista aos judeus na região polonesa da Cracóvia ganhou um relançamento como forma de relembrar os horrores do Holocausto – lembrando que o nazismo também perseguiu e exterminou, em número menor, mas também significativo, outros grupos étnicos, religiosos ou dissidentes por diferentes motivos, como eslavos, ciganos, comunistas, prisioneiros de guerra e civis soviéticos, deficientes físicos e mentais, homossexuais e Testemunhas de Jeová, por exemplo. Depois dos Estados Unidos, a cópia remasterizada de A Lista de Schindler chega ao Brasil – onde estreou em 1994 – com um vídeo de abertura do próprio Spielberg falando brevemente de suas razões para contar essa história naquele momento e para trazê-la de volta aos cinemas agora, em tempos tão turbulentos, em que existem vozes tentando negar ou relativizar este genocídio, ou tantos outros que não ganharam destaque histórico.
Não por menos, o cineasta adota uma postura documental em muitos momentos com a sua câmera a observar o decorrer daqueles acontecimentos. Ele confere um tratamento quase de “filme de arte” para a obra, diferente do que se via em suas superproduções de aventura ou ficção científica, que ultrapassa a simples adoção do uso do preto e branco na fotografia – que, aliás, marca o primeiro trabalho de Janusz Kaminski na longa parceria do diretor de fotografia polonês com Steven. O diretor apenas se propõe a filmar como se estivesse naquele momento retratado, evocando o final da década de 1930 e início dos anos 1940 na mise-en-scène, planos e iluminação que recordam clássicos da época, desde a apresentação do protagonista arquitetando sua aproximação dos nazistas durante uma festa, bem ao estilo noir, gênero muito popular naquele período.
Vale frisar que nesta cena em questão, Oskar Schindler, vivido por Liam Neeson que teve sua interpretação indicada para o prêmio da Academia, estava agindo por seu próprio interesse, deixando claro que a faceta heroica do personagem não vem de imediato. A narrativa do anti-herói é construída desde o início por esse espírito malandro do negociante, pelo estilo de vida esbanjador e pelas traições à esposa (Caroline Goodall). Mais que isso, ele se aproveitou da ocasião para abrir uma indústria siderúrgica na Cracóvia, que fabricasse artigos de primeira necessidade naquele momento de guerra, utilizando a mão-de-obra barata judia e burlando o regime nazista com falsificações e propinas para obtê-la.
Porém, é curioso como, desde o título original do romance no qual se baseia, com Schindler's Ark (1982) evocando a figura bíblica – e igualmente da Torá – do patriarca Noé, se constrói essa imagem do “bom alemão salvador dos judeus”, que ainda hoje é apontada por alguns críticos do filme. De fato, A Lista de Schindler transforma o povo judeu em coadjuvantes de seu próprio drama, algo que fica claro na pouca dimensionalidade dada até ao mais importante deles na narrativa, o contador Itzhak Stern (Ben Kingsley). No entanto, tanto no destaque ao redentor inimigo quanto no retrato mais generalista das vítimas, o cineasta filho de judeus ortodoxos conseguiu levar importantes e ainda pertinentes reflexões ao grande público.
Ainda que o roteiro adaptado de Steven Zaillian e a direção de Spielberg pesem a mão nos discursos finais, precisando atestar a transformação de Schindler, com ele mesmo se questionando de quantas vidas a mais poderia ter salvado, há uma contenção anterior muito bem-vinda ao tema. Se Oskar vai lentamente mudando sua consciência, se afeiçoando aos seus funcionários e vendo com os próprios olhos a violência absurda do regime nazista, eles por sua vez demoram a ter uma compreensão total do que os aguardava. O filme acompanha pacientemente o cerco gradual aos judeus, quase como um alerta dos sinais que passam batido do ciclo de um genocídio: o preconceito; a identificação visual dessa segregação nas braçadeiras com a Estrela de Davi; a coibição de uma vida econômica, religiosa, cultural e até amorosa; o cerceamento físico nos guetos; o encarceramento, exploração da força de trabalho e escravidão nos campos de concentração; até culminar no extermínio nas piores unidades do gênero.
Junto com essa falta de compreensão do que estava acontecendo e suas consequências, o longa também apresenta a resiliência daquela população à humilhação e certa adaptação às condições de momento pelo simples instinto de sobrevivência. Exemplo são as mercadorias raras durante a guerra que os judeus comercializavam clandestinamente, até com os alemães, em forma de escambo ou aqueles que se tornavam policiais do gueto, vigiando os seus para o inimigo. Quando este se personaliza em uma figura vilanesca com a entrada do sádico e descompensado capitão Amon Göth, o comandante do campo de concentração de Plaszow interpretado por Ralph Fiennes, que também foi indicado ao Oscar pelo papel, a necessidade faz os oprimidos, e aquele que passa a defendê-los, se manterem perto dele para serem uteis e, portanto, permanecerem vivos.
Se Spielberg perde a chance de arriscar e colocar, de fato, três minutos de silêncio no filme quando um personagem pede, o cineasta é extremamente feliz na escolha da inocente menina de casaco vermelho se destacando dentro de todo o horror em preto e branco que a cercava durante a desocupação do gueto de Cracóvia e transferência forçada dos judeus para os campos de concentração: simbolicamente, quando toma ciência da situação e vê a necessidade de se esconder, perde a cor assim como a guerra lhe tira a inocência, podendo só a morte lhe restabelecer as duas coisas. Os confrontos bélicos sempre serviram de mote para batalhas éticas dos personagens dessas produções, estando constantemente sob a linha tênue da vida e da morte, mas o diferencial de A Lista de Schindler e o excelente Julgamento em Nuremberg (1961) – para ficar em um exemplo que esta que vos escreve viu recentemente – está na maneira de acompanhar o Holocausto progressivamente, mesmo que seja em retrospecto como no segundo caso. É uma estratégia essencial para mostrar ao público como o Mal não se instaura de um dia para o outro; como ele vai crescendo pela intolerância de uns, pela ganância de outros e pelo medo até dos bons; e, mais que tudo, levar um questionamento moral para cada espectador refletir sobre a postura que tomaria naquela situação e sobre suas ideias e atitudes no atual momento.
A Lista de Schindler (Schindler's List, 1993)
Duração: 195 min | Classificação: 14 anos
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Steven Zaillian, baseado no livro “A Lista de Schindler” de Thomas Keneally
Elenco: Liam Neeson, Ralph Fiennes, Ben Kingsley, Caroline Goodall, Jonathan Sagall, Embeth Davidtz, Malgorzata Gebel, Shmuel Levy, Mark Ivanir, Béatrice Macola, Andrzej Seweryn, Friedrich von Thun e Krzysztof Luft (veja + no IMDb)
Distribuição: Universal Pictures
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