LA CAMA | Entrevista com a diretora Mónica Lairana
Atualizado: 26 de fev. de 2021
“Também é uma questão política, mostrar o que lhes é negado”, afirma a cineasta argentina Mónica Lairana sobre o seu interesse em apresentar com naturalidade os corpos nus e com as marcas do tempo de seus protagonistas de La Cama (2018). No primeiro longa-metragem como diretora e roteirista da atriz, Mabel (Sandra Sandrini) e Jorge (Alejo Mango) são um casal que, após 40 anos vivendo juntos, decidem se separar. Uma coprodução entre Argentina, Alemanha, Brasil e Holanda, o filme acompanha, com muita intimidade e paciência, esses momentos finais da relação deles, seja nas últimas tentativas de resgate de sua relação sexual ou no inventário dos objetos que guardam as memórias desse casamento.
Em entrevista ao NERVOS, a diretora conta a ideia de partida para a obra, seu interesse pela nudez e a velhice como temas desde seu primeiro curta-metragem, sobre o seu trabalho com os atores e toda a equipe técnica durante as filmagens e muito mais.
De onde surgiu a ideia do filme: primeiro, da ambientação intimista ou dos personagens com esse casal que está se desintegrando ou do tema?
Mónica Lairana: O filme surgiu a partir de uma experiência pessoal. Eu me separei depois de oito anos e, naquele momento, para mim, foi uma experiência muito desoladora, muito forte e bem triste. E me impactou tanto emocionalmente que tive a necessidade de fazer depois o filme. A princípio, não sabia a idade dos personagens, porque estava partindo de algo próprio, mas, depois, me pareceu que era interessante situar a mesma história em pessoas mais velhas. Porque é algo que havia passado comigo quando me separei e eu estava tão comovida e pensava: “se estou assim depois de oito anos e de não ter filhos, que complexo e difícil deve ser desvincular-se de um(a) parceiro(a) depois de 40 anos, com uma vida, uma casa, filhos...”. Então, um pouco desse pensamento recorrente que eu tinha me fez contar essa mesma história só que nessa idade para aprofundar mais o quão complicado pode ser atravessar essa situação, depois de tanta história em comum, tanto passado.
E acabou ganhando mais camadas com esse medo do envelhecimento que o filme foi adquirindo com esse caminho pelo qual a história tomou...
Sim. Também, o que passou foi algo muito recorrente desde meus curtas anteriores. Meu primeiro curta-metragem se chama Rosa (2010), que é uma senhora de 60 anos, sozinha, e aborda um pouco da sexualidade dessa mulher de 60 anos que quer sair e se sentir viva, fazer sexo e sentir-se feliz. Creio que ocorreu naturalmente continuar por esse caminho. Sinto que tenho como uma sensibilidade especial com essa etapa da vida. Como uma etapa da vida que me interpela, que me interessa, que me dá temor... Não sei. Então, tudo isso conflui para que eu volte a me interessar por isso. E igual a esse primeiro curta, retomei ou continuei uma estética que tinha a ver com observar mais do que intervir cinematograficamente. Por isso, a mise-en-scène prioriza a intimidade, uma câmera bem calma e muito tranquila. Por isso, não tenho medo que os planos durem muito tempo. Até porque, sinto que isso tem a ver com o tempo dessa idade, com observar alguém com cuidado. Um pouco do longa é uma continuação daquele curta e um tipo de aprofundamento em uma estética que me interessa.
Quando comecei a pensar no filme em imagens, em estrutura dramática e tudo que implica fazer um filme, tomei muitas decisões que sabia que iam ao contrário do que se espera. Estamos muito acostumados com um cinema mais vertiginoso, com ritmo mais [estalando os dedos para indicar essa velocidade], onde a informação é tamanha – os filmes renovam a informação de cena em cena. E eu tomei a decisão que, neste filme, a informação ia ser mínima, que os diálogos iam ser mínimos e o que me interessava era observá-los durante esse momento e seus corpos. Nesse curta que eu te disse, o Rosa, também abordava o tema do corpo, o corpo desnudo, o corpo adulto, o corpo real. Diria até que é uma questão política, pelo menos na Argentina, culturalmente, é negado o direito ao seu corpo; a partir de uma certa idade, se supõe que você já tem que cobrir seu colo, uma senhora não pode mostrá-lo.
Não é muito diferente aqui...
Me enoja muito isso, é tão equivocado. Creio que um corpo que mostra as marcas do tempo está mostrando a vida, não há nada mais lindo que isso. Então, também é uma questão política, mostrar o que lhes é negado. E com o tema da sexualidade, sucede algo parecido. Na Argentina, pelo menos, o que acontece é pensar que uma mulher nessa idade tem que ser avó, cuidar dos netos. Então, também há uma exceção de mostra-las como seres sexuais. Ainda que neste filme, eles não estão podendo, a sexualidade existe. E neste caso, há impossibilidade, porque emocionalmente eles estão em conflito, mas são seres sexuais, com desejo e vida. Eu sinto que, em um filme onde aparentemente tudo está morrendo, para mim, não há nada mais vital que a decisão eles tomam de separar-se. Porque se separar nesta idade é realmente um desejo de vida, desvinculando-se e apostando em uma vida nova. É uma decisão bem forte e muito vital, ainda que o filme mostre outra coisa.
Para você, como roteirista e diretora, quais foram as suas preocupações para tentar manter esta chave ambígua do filme com esse sentimento de luto nostálgico que permanece nos personagens?
O que eu trabalhei com os atores e, de alguma maneira, trabalhei na estrutura do filme foi como se fosse uma viagem emocional. Em geral, os filmes tem uma narrativa em que se espera a resolução de um conflito. Neste caso, nenhum está esperando a resolução deste conflito, já sabem qual vai ser esse final. O que se faz é acompanha-los nessa viagem emocional que eles atravessam, em um turbilhão de emoções. E esse foi o objetivo que eu me pus. O fio condutor do filme era a emoção, o que se passava com eles. O importante não era tanto o que faziam em ação. Então, o importante não era tanto o que faziam, em ação, e sim a viagem emocional interna que estavam fazendo que, às vezes, era só um do lado do outro sentado, compartilhando o silêncio. E depois, outra coisa que me interessava era a casa, que, para mim, é um terceiro personagem, também atravessava uma curva emocional. Para mim, a casa também entra em crise: há um momento em que está de uma maneira, depois está um caos. Então, atravessa também diferentes estágios e, finalmente, conclui em um que é similar ao deles. E também me interessava trabalhar nesta casa, os objetos. Escolhemos, junto com a diretora de arte [Maru Tomé e Renata Gelosi exerceram a função na produção] muito especialmente cada objeto que iríamos mostrar, porque, como não queria dar uma informação do passado deles pelos diálogos, tentamos contar através dos objetos o passado em comum. As lembranças de férias, por exemplo, para tratar de reconstruir o passado feliz que eles tiveram nessas pequenas coisas que se mostram.
Ver a vida que existia ali antes, né.
Sim. E também, em relação a esse passado feliz que rompe sem querer, que está na metáfora do elefante, uma metáfora ingênua, mas que serve para narrar, como ele tenta pegar algo que já se transformou em outra coisa. Eu, pelo menos, sinto que, no início do filme, o personagem dele se nega a assumir a decisão e não começa a embalar e juntar as coisas. E ela, ao contrário, ela que está mais a frente disso. E são decisões que vai e vem durante o longa, até que os dois juntos atravessam esse momento de começar a tirar as coisas, a decisão final.
E nesse seu trabalho com os atores, como contou sua própria experiência como atriz para conseguir essa intimidade dos dois? Mesmo com a câmera, mesmo estando atrás de portas ou janelas, você consegue uma intimidade que é muito difícil?
Essa intimidade tem a ver, um pouco, com um trabalho que fiz com eles. Nós, a partir da leitura do roteiro, fizemos um trabalho de mesa onde eu abria o projeto muito sinceramente. O que acontece comigo, como atriz, é que, às vezes, sinto que os diretores se recusam a abrir o projeto, a contar exatamente quais são as intenções e, de alguma maneira, isso impede ao ator entregar tudo que poderia brindar a esse projeto. Então, com essa experiência, não quis repetir isso e fiz o contrário: lhes abri plenamente o projeto. Falamos muito sobre o que eu queria, sobre o que necessitava, dos porquês, do porquê dos corpos nus, de como se iria filmar, de onde iria pôr a câmera, de que tipo de poética eu buscava. Então, com eles sabendo plenamente o que eu buscava, eles se somaram com uma confiança total. Toda essa conversa franca e prévia foi para eles pudessem decidir se queriam fazer esse filme e, para mim, isso foi fundamental, porque, às vezes, o que ocorre é a direção e a produção estar acima deles para que possam atuar, mas acho que deve ser uma decisão igualitária. Tivemos uma semana muito intensa de um treinamento físico com eles, para que seus corpos ganhassem confiança. Não só em determinadas cenas do longa, mas qualquer situação, para que o contato físico tivesse confiança. E na verdade, isso foi ótimo, porque, ao finalizar essa semana, eles estavam muito familiarizados, tinham muita confiança um com o outro.
Pra passar, corporalmente, esses 40 anos de convivência...
... De convivência. Então, era necessário atravessar, antes da filmagem, os abraços, a pele, isso, para mim, era tão fundamental neste filme. E uma vez finalizada essa semana, isso já estava atingido, o que fizemos depois foi ensaiar as cenas que, para mim, era importante, atravessá-las antes, como, por exemplo, as cenas de sexo. Ensaiamos, pensamos em uma desenvolvimento possível e, na verdade, quando chegamos às filmagens, todos já sabiam o que iam fazer. E foi também trabalhado o tema da nudez com a mesma naturalidade que eu pretendo que se tome. O que quero dizer é: se eu mesma estou dizendo “por que devemos nos surpreender com um corpo nu”, então o mesmo ocorreu durante as filmagens. Na minhas filmagens, tudo aconteceu com naturalidade. Nunca ocorreu o que acontece habitualmente que é chegar a cena de nudez e esvaziar o set. Lidamos tudo com o mesmo nível de naturalidade. Não dizia “Corta!” e vinham com um roupão cobrir, nada. Isso também é importante, porque toda a equipe técnica, eles [os atores], eu, sabíamos o que estávamos fazendo e estávamos todos em uma comunhão de ideias. E, de verdade, creio que isso se traduz na intimidade que se conseguiu no filme, porque, assim como eles se entregaram na intimidade, não tinha ninguém na equipe técnica que estava sentindo incômodo, estávamos todos trabalhando para conseguir essa poética e pensando que isso é natural.
Conexões Nervosas
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A mim, seus quadros [de Lucian Freud] me acompanham durante todo o filme. Em alguns momentos, até tentei, humildemente, homenageá-lo como as posições dos corpos de seus quadros. E algo parecido aconteceu comigo, em outras cenas, com outro pintor, Edward Hopper, que também pinta corpos desnudos e que amo – para mim, são incrivelmente transmissores de sentimento em um quadro. Porque vejo os quadros e me transmitem solidão, calor, transpiração, amor.
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E, depois, cinematograficamente falando, há um filme antigo que se chama Mãe e Filho, de Sokurov, que é também muito tranquila e narra os instantes do vínculo final de um filho que está cuidando da mãe, que está para morrer. E há algo dessa sensibilidade e da maneira como filma, que espera, e de convicção em que nem tudo tem de ser feito correndo. “Vamos contemplar a situação”, eu creio muito na contemplação e, na vida cotidiana, quando nos dedicamos a contemplar alguém ou alguma situação, acontece o fenômeno da empatia. Creio que, socialmente e mundialmente, estamos precisando cada vez mais antagonizados, porque não damos espaço para a contemplação; estamos tão apressados, que não nos olhamos. Quando se olha, se escuta de verdade, acontece a empatia, por mais diferente que seja o outro. Há algo disso que se traduz nesse filme e que eu tente, humildemente, fazer na minha obra.