NÓS | O subterrâneo da mente humana
Atualizado: 25 de fev. de 2021
Na epígrafe que abre o novo filme de Jordan Peele, Nós (2019), o texto evoca a imensa quantidade de túneis sob o solo norte-americano. É como se o comediante que chamou atenção na sua estreia como diretor em Corra! (2017) nos chamasse para ver abaixo da superfície, seja da história que está contando e dos inúmeros simbolismos que põe na tela ou dos Estados Unidos e seus vários mitos nacionais. Mais que isso, o convite é para um mergulho adentro do conhecimento superficial que cada um crê ter de si mesmo.
É isso, além da curiosidade infantil, que atrai a pequena Adelaide, então interpretada por Madison Curry, para uma casa de espelhos em um parque de diversões, no prólogo ambientado em 1986. Quando, na pele de Lupita Nyong'o, ela retorna à mesma praia de Santa Cruz, já adulta, casada com Gabe (Winston Duke, que serve como alívio cômico da vez, mas sem abandonar o drama familiar) e mãe de dois filhos, a adolescente Zora (Shahadi Wright Joseph) e o agitado garoto Jason (Evan Alex), o cenário onde viveu um grande trauma na infância lhe traz uma angústia que se justifica no momento em que duplos de cada um deles surgem, à noite, na frente da casa para fazer uma “visita” à família Wilson. Ao escolher como o inimigo em questão nada menos do que indivíduos iguais aos protagonistas, o cineasta obriga o público a não procurar personalizar em outros, mas ver em si próprio este Mal do qual os filmes de terror gostam de tratar.
Esta escuridão da alma, assim como a da noite, é belamente filmada por Peele e pelo diretor de fotografia Mike Gioulakis, que tem se especializado no cinema de gênero, vide Corrente do Mal (2014-), Fragmentado (2016) e Vidro (2019). Mas existe uma pequena e importante subversão às convenções do horror, quando este se manifesta também à luz do dia, na atmosfera solar de uma praia californiana. Algo raro e que é mais um elemento da dualidade que a obra deseja discutir, especialmente ao borrar os limites que se acredita serem característicos de cada um dos lados da ambivalência que se está em foco.
O cineasta costuma fazer isso também no tom de seus filmes, algo que é observado neste segundo trabalho, até de forma mais veemente na trilha sonora. Se a dramaticidade e ambientação aterrorizante são suscitadas pelas composições originais de Michael Abels, a seleção musical vem para contrapor, comicamente ou não, a ação na tela. É o que acontece quando surgem Good Vibrations do The Beach Boys, Fuck Tha Police do N.W.A. e Les Fleurs de Minnie Ripperton, embora seja I Like That de Janelle Monáe, que toca despretensiosamente no início, aquela que de fato pincela as contradições humanas inerentes que a trama irá abordar.
No entanto, ainda que elementos cômicos comecem a se intensificar no decorrer da trama, a atmosfera de horror está estabelecida desde o início em Nós, dando um equilíbrio mais orgânico entre o terror e comédia do que acontece em Corra!, onde a sátira à falsa impressão de igualdade racial no país, ao mesmo tempo, dissipava a escassa ambientação amedrontadora e sublinhava o verdadeiro terror da realidade. O racismo cotidiano era/é muito mais assustador do que a ficção construída em seu début para fazer essa crítica, por isso a ideia por trás sustenta mais o roteiro de Peele, premiado com um Oscar de Roteiro Original, do que a própria narrativa. Aqui, ele estabelece o medo, primeiro pela história e, em um segundo plano, por aquilo que enxergamos de nós mesmos ali. E ainda que precise de diálogos expositivos para explicar os plot twists, o recurso preguiçoso é relevado com os ricos detalhes que seu texto e direção oferecem para engrandecer a obra.
Assim como o uso de uma teoria da conspiração, agora alertada menos em forma de piada do que em seu primeiro longa, que se torna realidade e experimentos com o corpo humano no seu script, o realizador volta a temas que lhe são caros. Na realidade, é vendo Weird City (2019), série original do YouTube de comédia e ficção científica que criou recentemente com Charlie Sanders, que se confirma, no primeiro e único episódio roteirizado por ele, a sua vontade de falar sobre cisão social, posse, interferência governamental na vida das pessoas e ter os comerciais de TV estranhos quase como uma marca. Se, em Corra!, a posse física era um subterfúgio para falar da história da escravidão e da apropriação cultural atual em seu estudo sobre o racismo, a ideia de se apossar de uma vida – curiosamente, Paul Thomas Anderson, o qual Jordan admira por Trama Fantasma (2017), se tornando mais próximo dele na penúltima temporada de premiações, está nos agradecimentos finais da produção – ou do sonho dela é levada a um nível mais filosófico, enquanto é possível fazer os mais variados tipos de leitura a partir disso.
Provavelmente, alguém pode falar mais do que esta crítica que vos escreve, sobre as questões raciais implícitas no filme. O fato de ter como protagonistas essa família negra já é, por si só, um manifesto por representatividade, sendo possível fazer igualmente uma leitura parcial de como o racismo pode colocar iguais contra si mesmos. Contudo, a partir do momento no qual os amigos dos Wilson, Kitty (Elisabeth Moss, ótima como sempre) e Josh Tyler (o comediante Tim Heidecker se exercitando em outra área), adentram de vez a trama, fica claro que o discurso de Peele é mais abrangente desta vez.
A imagem de iguais para explicitar diferenças é constantemente usada pela nossa cultura e o filme não só trabalha com elementos como o jogo de espelhos e as próprias gêmeas filhas dos Tyler (vividas por Cali e Noelle Sheldon que, quando bebês, eram a Emma da série Friends), mas se aprofunda no mito germânico do Doppelgänger, de uma cópia idêntica e negativa que extrai o pior da pessoa de quem é semelhante. Dostoiévski já usou a lenda em um de seus livros, assim como tantos outros no cinema, mas fica aqui a lembrança do curta brasileiro O Duplo (2012), de Juliana Rojas, que também aborda a ideia dentro do gênero de terror e tem a tesoura como um recurso cênico e metafórico dessa dualidade humana. A utilização desse conceito não só oferece uma grande oportunidade ao elenco, especialmente à Lupita, que já tem um Oscar na prateleira por 12 Anos de Escravidão (2013), na construção totalmente diferente que a atriz faz de Adelaide e da sua versão sussurrante e tétrica em vermelho, mas permite a abordagem multidisciplinar dessas sombras que desenvolvem o pior de "nós".
Dentro da psicologia, Freud invocaria o inconsciente humano nesta alegoria, tal qual a sociologia veria nela a representação de como duas pessoas iguais, criadas em situações diferentes, são afetadas por esse ambiente em um estudo sobre classes sociais e os sentimentos de ódio e vingança que podem surgir dessa divisão, além da própria polarização político-social dos nossos tempos. Além disso, algo que, inevitavelmente, a tradução do título perde do original Us, é seu segundo sentido ao se referir à sigla do próprio país em inglês, United States, embora o cineasta faça questão de frisar seu discurso através de uma personagem, que diz "Nós somos americanos". Peele está interessado nessa América que se corrói dentro dos seus próprios mitos, dos sonhos do modo de vida norte-americano que nem sempre se concretizam dependendo das condições ou de uma união que se revela contraditória ou hipócrita, como faz ao se utilizar do “Hands Across America”, evento beneficente contra a fome e em apoio às pessoas sem teto, realizado durante o governo Reagan e apoiado por ele, sendo que o presidente diminuiu a verba estatal neste sentido.
Existem ainda todas as referências bíblicas, diretas ao mencionar três vezes, tal qual o canto do galo durante a paixão de Jesus, apenas o livro do profeta Jeremias, capítulo 11, versículo 11. Lá, está escrito de forma apocalíptica: “Portanto assim diz o Senhor: Eis que trarei sobre eles, de que não poderão escapar; e clamarão a mim, mas eu não os ouvirei”. Mas antes, de maneira indireta, se resgata a imagem do Pecado Original, com a pequena Adelaide carregando uma maçã do amor, apesar de nunca ser citada na Bíblia como a Fruta do Conhecimento, proibida no Paraíso e da qual Adão e Eva experimentaram, condenando toda a humanidade.
Aliás, a definição de humanidade é posta em xeque por Peele, misturando o que e quem se considera humano ou animalesco enquanto o instinto de sobrevivência, de defesa dos seus, de violência e de almejar uma vida melhor perpassa todos os personagens, sendo os originais ou suas cópias. A ideia de que Nós somos tão complexos é apropriada pela própria obra, que se desvela em tantas camadas que, possivelmente, não foram abordadas neste longo texto – e sinta-se a vontade para falar delas nos comentários. A vontade é de rever o filme logo depois de assisti-lo para entender todos esses elementos, mas diferente de alguns casos do tipo, a satisfação é garantida já na primeira fruição.
Nós (Us, 2019)
Duração: 116 min | Classificação: 16 anos
Direção: Jordan Peele
Roteiro: Jordan Peele
Elenco: Lupita Nyong'o, Winston Duke, Elisabeth Moss, Tim Heidecker, Shahadi Wright Joseph, Evan Alex, Yahya Abdul-Mateen II, Anna Diop, Cali Sheldon, Noelle Sheldon, Madison Curry e Ashley Mckoy (veja + no IMDb)
Distribuição: Universal Pictures
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