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Foto do escritorNayara Reynaud

O ÓDIO QUE VOCÊ SEMEIA | Códigos sociais invisíveis, segregação escancarada

Atualizado: 18 de fev. de 2021


Amandla Stenberg em cena do filme O Ódio que Você Semeia (The Hate U Give, 2018) | Foto: Divulgação

Logo na primeira cena de O Ódio que Você Semeia (2018), um pai (Russell Hornsby) ensina a seus filhos, ainda crianças, a como reagir a abordagens policiais, para torna-los cientes de que o racismo os fazem alvos fáceis e de quais são os seus direitos. A pequena mudança em relação ao livro homônimo de Angie Thomas, do qual é baseado, de puxar essa cena como um prólogo não só pavimenta o caminho para a cena-chave que movimenta toda a trama, mas é o primeiro choque de realidade que uma plateia sem essa vivência vai tomar durante as mais de duas horas do longa de George Tillman Jr. Um trabalho, aliás, que já desponta como um marco na carreira do diretor de Homens de Honra (2000) e Notorious B.I.G.: Nenhum Sonho é Grande Demais (2009).

O roteiro assinado por Audrey Wells, de Sob o Sol da Toscana (2013) e Quatro Vidas de um Cachorro (2017), adapta o best-seller para o público jovem adulto O Ódio que Você Semeia (2017), mantendo a voz da protagonista como narradora em off para apresentar sua rotina e seus gostos. Starr (Amandla Stenberg) poderia ser só uma estudante de ensino médio com uma preferência anacrônica pelos anos 90, desde os astros do basquete daquela década ao seriado Um Maluco no Pedaço (1990-96) e o pôster no quarto do primeiro álbum do TLC, Ooooooohhh... On the TLC Tip (1992), mas o grande diferencial da obra é unir os questionamentos sobre identidade, comuns a filmes adolescentes, com a questão racial. A jovem carrega em si um sentimento de deslocamento que tem raízes geográficas e raciais: é burguesa demais para o seu bairro de Garden Heights – fictício, embora a Atlanta que serve de cenário não seja muito diferente –, onde o destino marcado em seu antigo colégio é GTA, gravidez, tráfico ou morte; porém, não pode ser do gueto na escola particular de um subúrbio rico em que estuda, embora seus colegas brancos possam fazer isso sem serem julgados como ela seria.

Desconfortável nas duas versões dela mesma, ela tem um momento de relaxamento quando reencontra o seu amigo de infância Khalil (Algee Smith, de Detroit em Rebelião, de 2017), mas quando aquilo que aprendeu quando pequena se torna real, ela é testemunha da morte dele por um policial em uma desastrosa abordagem. Sofrendo pela perda de seu antigo parceiro de varinha Harry Potter e primeiro amor, ela nem tem muito espaço para assimilar o trauma pelo qual passou, ao enfrentar o interrogatório na delegacia, tentar esconder o acontecimento na sua escola, receber o convite de uma ativista (Issa Rae, da série Insecure) para testemunhar no grande júri e ser “aconselhada” pelo líder da gangue local (Anthony Mackie, o Falcão de Os Vingadores) a não abrir a boca sobre o assunto. Com pressão para todos os lados, a garota encontra apoio na família, destacando o ótimo trabalho de Regina Hall, conhecida pela franquia de paródias Todo Mundo em Pânico, está tendo destaque este ano também por Support the Girls (2018) – como uma mãe que quer evitar que a violência alcance os seus filhos e Russell Hornsby, de Um Limite Entre Nós (2016), na pele do ex-presidiário e hoje dono da mercearia local Mav, que ensina resiliência e resistência aos seus rebentos.

Amandla Stenberg, que um dia foi a pequena Rue de Jogos Vorazes (2012) e já protagonizou Tudo e Todas as Coisas (2017) e Mentes Sombrias (2018), agora tem o veículo perfeito para mostrar seu talento. Esse deslocamento da personagem aproxima qualquer espectador que passe por essa experiência de “mudar de chave” dependendo do local em que se encontra, enquanto a atriz absorve gradativamente esse chamado para Starr assumir e defender suas raízes afro e periféricas. Um chamado que os realizadores também fazem desde a existência dessas obras literária e cinematográfica em um universo cultural que, geralmente, guetifica mais a produção negra nestas áreas do que na música, por exemplo.

Assim, Tillman faz das convenções do gênero utilizadas aqui, que podem diluir o senso de urgência em um primeiro momento, um caminho para abranger um público maior ao tratar sobre o racismo presente em várias estâncias e camadas, sendo introjetado dentro das próprias vítimas. Sua melhor amiga de escola (Sabrina Carpenter) começa a transparecer um preconceito enraizado, enquanto o fato de namorar Chris (K.J. Apa, da série Riverdale) causa desconforto nos corredores e até em sua casa ao avistarem o casal interracial. O discurso inicial do pai e certas demonstrações revelam uma comunidade obrigada a se acostumar à rotina de violência. Khalil cita 2Pac e seu Thug Life, em que o rapper Tupac Shakur fala da vida bandida como uma resposta inevitável a um sistema segregador que não dá oportunidade aos negros ou mais pobres, e originando o título. Por outro lado, o discurso do tio da garota, um policial negro vivido pelo rapper Common, carrega uma dose de compreensão sobre os agentes de segurança em ação com a cabeça a mil – lembrando até um comentário do nacional O Doutrinador (2018), de como eles são “ensinados a matar” –, mas revelando como sua letalidade é seletiva e resultante de um pensamento racista que acompanha até ele mesmo.

A narrativa navega pelo melodrama e alguns clichês, sem tornar-se piegas, ainda que se esforce demais para entregar um final esperançoso. Mas um pouco de otimismo em um cenário tão realista e atual não diminui a carga dramática e crítica da obra, capaz de gerar uma tensão absurda em qualquer um na plateia e o choro natural de quem vê sua realidade na tela. Mais assertivo em suas intenções e execução, O Ódio que Você Semeia se junta a Com Amor, Simon (2018), como títulos que atualizaram os filmes adolescentes neste ano.

 

O Ódio que Você Semeia (The Hate U Give, 2018)

Duração: 133 min | Classificação: 14 anos

Direção: George Tillman Jr.

Roteiro: Audrey Wells, baseado no livro “O Ódio que Você Semeia” de Angie Thomas

Elenco: Amandla Stenberg, Regina Hall, Russell Hornsby, Anthony Mackie, Issa Rae, Common, Algee Smith, Sabrina Carpenter, K.J. Apa, Dominique Fishback, Lamar Johnson, TJ Wright e Megan Lawless (veja + no IMDb)

Distribuição: 20th Century Fox (Fox Film do Brasil)

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