O DOUTRINADOR | O anti-herói antissistema
Atualizado: 17 de fev. de 2021
O tempo, por vezes, é implacável na tarefa de minar certos produtos culturais, tornando-os datados. Mas, em outras oportunidades, ele os alcança para lhe conferir mais relevância. É nesta segunda categoria que se encaixa O Doutrinador (2018) desde sua origem.
Foi ainda em 2008 que o quadrinista Luciano Cunha teve a ideia desse personagem, mas a deixou na gaveta por cinco anos, ao finalizar sua concepção como um ex-militar do Exército revoltado com a situação do Brasil, que resolve caçar os políticos, empresários e até dirigentes de futebol corruptos do país, sob um casaco com capuz e uma máscara de oxigênio. Justamente quando lançou a webcomic O Doutrinador (2013), vem as Manifestações de Junho trazendo as figuras semelhantes do “black blocs” e fazendo bombar a página do Facebook onde o quadrinho foi lançado três meses antes. O sucesso do anti-herói brasileiro cresceu paralelamente ao enredo cada vez mais mirabolante da política nacional, foi levado às bancas nas edições encadernadas a partir de 2015 e rende a adaptação de um projeto conjunto, com o filme que é lançado agora e a série homônima que estreia no canal Space no ano que vem.
Mais uma vez, o justiceiro antissistema encontra ecos na atualidade com a sua chegada aos cinemas exatamente depois dessas eleições presidenciais e estaduais de 2018. Sem endereçar nomes como Cunha fazia em suas páginas, o longa de Gustavo Bonafé com codireção de Fábio Mendonça prefere representações fictícias com diálogos pautados pela realidade, sendo possível ao espectador enxergar traços comuns a personalidades, partidos e correntes políticas variadas na crítica geral que faz ao “sistema”. Inclusive àqueles que se dizem “contra tudo que está aí”, tomando uma postura muito mais anarquista no decorrer da narrativa.
O anti-herói toma a forma na tela como Miguel (Kiko Pissolato), agente federal de uma força de operações especiais que está à frente da investigação e prisão de corruptos como o governador Sandro Correa (Eduardo Moscovis), mas enfrenta a engenhosidade dos esquemas de uma rede que se protege. O roteiro de muitas mãos, escrito por Mirna Nogueira, LG Bayão, Rodrigo Lages, Denis Nielsen, Guilherme Siman, Gabriel Wainer e do próprio Cunha, segue convenções do gênero ainda inexplorado no Brasil, sendo a da perda que faz o super-herói se revelar ou o maniqueísmo dos vilões, liderados por Antero Gomes (Carlos Betão), que encontra respaldo nos filmes mais antigos deste tipo em Hollywood, mas não justificativa nos blockbusters mais recentes. Quanto ao primeiro quesito, vale ressaltar o quanto Natália Lage, que faz a ex-esposa do policial, engole Pissolato na cena capital do arco dramático do protagonista, mas o ator não compromete no resto, quando é exigido mais como astro de ação.
A hacker Nina, vivida por Tainá Medina, faz não só as vezes de aliada do anti-herói, como também representa a raiz desta obra, ao trabalhar como vendedora de uma loja geek, especializadas em HQ’s. A direção de Bonafé, que lançou há menos de um mês a cinebiografia Legalize Já: Amizade Nunca Morre (2017) e Chocante (2017) no ano passado, carrega uma verve pop, tendo em mãos uma produção que apresenta grande qualidade em seus aspectos técnicos, com exceção dos efeitos especiais na cena final. A fotografia de Rodrigo Carvalho e a direção de arte de Marghe Pennacchi se destacam na composição de uma paleta de cores neon, que ambienta uma metrópole brasileira futurista sem nome que recorda brevemente Blade Runner nesta estilização que aproveita a fantasia do gênero, mas mantendo os dois pés na realidade ao manter reconhecível a cidade de São Paulo – apesar do sotaque carioca dos personagens.
A violência gráfica confere à produção a classificação indicativa de 16 anos, sendo utilizada narrativamente como catarse de uma insatisfação popular. Se roteiro e direção tratam de maneira superficial este herói em uma jornada muito mais complexa do que o filme trata, ao menos existem críticas pontuais aos métodos por ele adotados. Só fica a dúvida quanto ao ruído da recepção da audiência em tempos tão polarizados: se uma década atrás, em uma época menos turbulenta politicamente, os dois longas de Tropa de Elite tiveram seu anti-herói Capitão Nascimento visto apenas por seu lado heroico por àqueles que acreditam que a resposta violenta é a principal solução dos problemas do Brasil, a chance de uma interpretação errônea no mesmo caminho é muito mais fácil em O Doutrinador.
O Doutrinador (2018)
Duração: 108 min | Classificação: 16 anos
Direção: Gustavo Bonafé e codireção de Fábio Mendonça
Roteiro: Mirna Nogueira, LG Bayão, Rodrigo Lages, Denis Nielsen, Guilherme Siman, Gabriel Wainer e Luciano Cunha, baseado no personagem criado por Luciano Cunha
Elenco: Kiko Pissolato, Tainá Medina, Samuel de Assis, Carlos Betão, Marília Gabriela, Eduardo Moscovis, Helena Ranaldi, Natália Lage, Tuca Andrada, Gustavo Vaz, Natallia Rodrigues, Nicolas Trevijano e Eduardo Chagas (veja + no IMDb)
Distribuição: Downtown Filmes / Paris Filmes