MOSTRA SP 2018 | Entrevista com Li Cheng, diretor de “José”
Atualizado: 17 de fev. de 2021
“Víamos que elas estavam sofrendo e devíamos fazer alguma coisa, por isso essa ‘carta de amor à Guatemala’”, declara o diretor Li Cheng, que esteve presente, com o corroteirista e produtor George F. Roberson, nesta 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. A dupla formada pelo diretor chinês e o realizador norte-americano apresentou o filme premiado em Veneza, José (2018), que foi rodado no país da América Central. Em entrevista ao NERVOS, eles falam da nação que escolheram para falar de amor, relações familiares, homofobia, pobreza, religiosidade e, acima de tudo, humanidade, além de comentar sobre um futuro projeto no Brasil, como você confere a seguir.
Você tem uma vida nômade. Você nasceu na China, estudou nos Estados Unidos e viajou muito pelo mundo. Então, como foi o seu caminho para chegar até a Guatemala e o que lhe interessou a filmar lá?
Li Cheng: Então, eu nasci, cresci e fiz faculdade na China. Fui aos Estados Unidos para o PhD em Biologia. E nós, o produtor George e eu, estávamos interessados na cultura latina. A imagem do povo latino nos EUA é muito ruim e nós não acreditamos que é verdade, que é certa. Então fomos às grandes cidades da América Latina pesquisar, fazendo entrevistas com os jovens e sentimos que as pessoas estavam lutando, tão humanas como quaisquer outras. Quando chegamos à Guatemala... enfim, coisas que não podemos contar, mas é muito urgente fazer alguma coisa lá, porque a população está realmente sofrendo. O nível de pobreza é muito alto lá, um alto índice de crimes contra as mulheres, um alto número de assassinatos de crianças. Mas, ao mesmo tempo, as pessoas são gentis. Então, nós quisemos fazer um filme sobre este cara na Guatemala, que também é baseado em histórias reais de um momento muito difícil. Nós conhecemos a história um homem que foi marcado no pescoço, foi muito traumático.
Então, você chegou lá e viu toda essa situação de miséria. Mas desde o início você pensava em fazer um romance homossexual ou foi algo que surgiu durante o desenvolvimento e a pesquisa lá?
Li Cheng: Sim e não. Uma das histórias reais é dessa mãe que o filho mais velho contou a ela que é gay e ela disse “você nunca vai saber o que é o verdadeiro amor”. E é muito brutal para um adolescente ouvir isso e não é verdade. Essa é uma das razões porque nós fizemos este filme, mas, ao mesmo tempo, nós queríamos uma emoção universal no longa. Só acontece que o personagem principal é gay, o seu amor é por outro homem. Nós realmente queríamos explorar e investigar esses temas universais, essa relação mãe e filho, essa coisa de homem de estar sempre procurando em volta como um solitário, esse tema do amor e da perda que acontece com todo mundo. A paixão e a dor que sempre vêm junto.
George F. Roberson: Nós também procuramos essa linguagem visual que queríamos usar e também se conectava com essa coisa dos homens serem quase solitários e silenciosos. Existem homens muito falantes, mas a maioria não diz muito sobre algo que realmente importa. Então, nós tentamos captar isso na tela usando mais a linguagem visual e a observação.
Continuando com essa universalidade e peculiaridade... Nesta Mostra, por exemplo, a seleção teve alguns queer filmes consideráveis, como O Mau Exemplo de Cameron Post e Rafiki, em que esse mesmo conservadorismo e o elemento religioso são um obstáculo entre o(a) protagonista e sua família. Em José, quais são essas coisas que você já disse que são universais e o que são peculiares da Guatemala?
Li Cheng: O que nós observamos na Guatemala foi o quanto é popular a religião evangélica.
Aqui também.
L.C.: Acho que ela cresceu rapidamente nos países da América Latina.
George F. Roberson: No mundo cristão, o evangelismo tem, de fato, o aumento mais rápido em grupos populacionais que estão crescendo.
Eles se espalharam nas periferias. Você passa nessas ruas e vê uma porta onde há uma igreja, na outra porta, tem outra igreja.
L.C.: Sim, nós vivemos na Guatemala por dois anos, viajamos pelas cidades de lá. Não importa quão pequena é a vila, haverá uma igreja evangélica. E pode ser em uma portinha de garagem, você abre e tem uma igreja. Não que eu queira criticar a religião, nós só queremos mostrar o fato, a realidade e onde este personagem está inserido, em que condições. Acho que as plateias podem fazer seu julgamento. É a religião? Eu acho que é, porque elas são praticamente anti-homossexual.
G.F.R.: E, uma das razões do que porque escolhemos a Guatemala, é que toda a América Latina é, estatisticamente, muito religiosa. Mais de 90% declara ter uma religião. E essas pessoas, mais de 90% rejeitam a homossexualidade, por causa da sua religião. Então, é um lugar altamente homofóbico. Nós queríamos dar atenção a isso, porque, nos EUA, homofobia é geralmente atribuída ao islamismo e não ao cristianismo. Também, queríamos mostrar, de um lado, essa questão religiosa que pauta a opinião pública, mas que, de outro, os jovens não compartilham da mesma opinião. Quando ficavam sabendo do projeto, falavam que nós não conseguiríamos fazer o filme, nenhum ator aceitaria fazê-lo. Mesmo assim, falamos com os jovens e nenhum rejeitou o filme. Queríamos mostrar este contraste.
E como foi a recepção ao filme na Guatemala?
Li Cheng: Nós ainda não exibimos ainda. Há muitas preocupações. Uma das preocupações principais é a segurança dos atores. Então, agora, com o Leão Queer no Festival de Veneza [o filme] virou notícia. Então, nós queremos acalmar um pouco e estamos procurando lançar no próximo ano, quando as coisas estiverem mais calmas para as pessoas assistirem ao filme.
George F. Roberson: E também há uma espécie de conceito acadêmico de quando você tem um problema, se você joga atenção a ela no exterior e recebe prêmios e notoriedade, isso não necessariamente lhe ajuda a se proteger dentro do país, mas faz as pessoas repensarem. “Se isso fez sucesso no Brasil, em Veneza...”, as pessoas dão mais chance a isso. E nós já estamos vendo isso, porque grandes jornais estão nos contatando para dar entrevistas, deram uma matéria de duas páginas no jornal de alcance nacional, uma manchete dizendo que “José é uma carta de amor à Guatemala”.
L.C.: Nós queríamos mostrar a realidade daquelas pessoas, mas também que elas têm dignidade e humanidade como qualquer um. Víamos que elas estavam sofrendo e devíamos fazer alguma coisa, por isso essa “carta de amor à Guatemala”.
G.F.R.: Na realidade, existe uma boa parcela da população vivendo em condições mais difíceis, mas preferimos evitar mostrar algo extremo, porque não queríamos que o público dos países ricos, que estão em todo lugar, porque [a Guatemala] é um dos mais pobres, olhasse e achasse exagerado.
E falando de não-atores. Quais foram as surpresas e desafios de trabalhar com atores não profissionais?
Li Cheng: Há sempre a parte boa e ruim de usá-los. Para mim, atores não profissionais, se forem talentosos, são um ótimo “papel em branco” que eu posso escrever as coisas nele, se você os ensaiar bem. Meus dois atores principais são ótimos, eles nunca fizeram um filme antes. Mas, em segundo lugar, é difícil ensaia-los, leva um tempo para prepara-los, mas tudo bem. É o que o filme precisa. Para mim, outra dificuldade é que não falo muito espanhol, então, meu ator principal, Enrique Salanic que faz o José, fala inglês muito bem e me ajudou muito. Ele foi meu tradutor para o outro ator. E muitas vezes, atores não profissionais são melhores que os profissionais, pela minha experiência. Um mestre do cinema de Taiwan que eu admiro, chamado Hou Hsiao-Hsien, também usa não-atores.
George F. Roberson: Acho que uma técnica é usar atores não profissionais e fazê-los interpretarem eles mesmos, mas ele [Cheng] tem uma técnica diferente. Ele os ajuda a chegarem a outro personagem. Enrique, que interpreta José, é um cara bem diferente do José.
L.C.: E eu não gosto dessa coisa dramática de parecer que está atuando demais [risos].
Você está trabalhando em um projeto aqui em São Paulo, pelo que fiquei sabendo. O que você pode dizer desse seu próximo filme? E se tem algum tipo de relação com José ou não?
Li Cheng: Nós chegamos a pensar em rodar José em São Paulo, mas continuamos com o plano de visitar mais cidades e achamos que na Guatemala era mais urgente. Mas na minha quarta visita a esta cidade, eu me sinto muito inspirada por ela. Há essa existência interessante de ricos e pobres, brancos e negros por uma longa história. E esse país tem um problema que é interessante também, que para mim, eu gosto de apontar outros problemas e igualmente a humanidade nas pessoas. Então, o próximo projeto, espero que se acontecer, vai ser sobre um cara de classe baixa lutando no limite, que é a maioria... Isso é outro importante tópico de José, que a maioria da população da Guatemala é pobre e tem a pele escura e não branca, porque 82% tem a pele escura [no caso, a imensa maioria de origem indígena e mestiços, ao lado de 1% de negros], mas você não a vê muito na TV e no cinema. Não achava justo e sentia uma responsabilidade de mostrar a vida dela. Então, não-branco, classe baixa, pobre, lutando para sobreviver... Em José, aconteceu dele ser gay, mas, para este projeto em São Paulo, ele será apenas mais um hetero comum. Então, eu espero que aconteça, porque a história está toda na minha cabeça; vivi algumas semanas em São Paulo e me senti ainda mais inspirado para filmar.
Conexões Nervosas
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> Neorrealismo italiano: filmografia de Ermanno Olmi, Luchino Visconti e Pier Paolo Pasolini
Li Cheng: Nós gostamos de filmes antigos, do século passado. Mas tem duas coisas que realmente influenciaram José. Uma é o neorrealismo italiano: Pasolini, Olmi e Visconti. Um dos primeiro filmes de Visconti, por exemplo, A Terra Treme (1948), as pessoas estão lutando para sobreviver em uma pequena vila de pescadores. Olmi tem A Árvore dos Tamancos (1978), que é sobre pessoas que alugam um local, a criança não tem calçado para vestir, então corta pedaços da árvore para fazer sapato para sua criança, mas é despedido por causa disso.
> Os Garotos De Fengkuei (1983) e Poeira no Vento (1986), filmes do taiwanês Hou Hsiao-Hsien
Li Cheng: Também tem esse cara taiwanês cujos filmes me influenciaram muito, especialmente no trabalho de câmera, como eu ensaio meus atores. Para mim, ele é um grande mestre. Sei que ele não é muito conhecido na América Latina. Mas ele é um grande mestre do cinema contemporâneo, para mim, é o número um. E teve dois filmes dele que influenciaram José.
> O Céu Que Nos Protege (1949), romance de Paul Bowles, que inspirou o filme homônimo de Bernardo Bertolucci de 1990; O Pão Nu (1972), autobiografia de Mohamed Choukri; Look & Move On (1976), autobiografia de Mohammed Mrabet
George F. Roberson: Quando estávamos nas nossas antigas carreiras e começando a fazer filme, dez anos atrás, nós moramos no Marrocos por um ano, e há uma grande literatura lá. Um deles é O Céu Que Nos Protege, de Paul Bowles, é um verdadeiro clássico sobre essa luta e enfrentar o desconhecido, e o Bertolucci fez um filme dele. E dois escritores árabes: Mohamed Choukri, que é o escritor árabe mais traduzido do mundo, e seu livro O Pão Nu é sobre sua história de vida de sobrevivência; e o outro é Mohammed Mrabet, que tem vários livros, mas um clássico para mim é intitulado Look and Move On, que é a história como os homens vivem, nós olhamos, temos um amor, aí algo acontece ou não acontece, você se desaponta, aí olha e segue em frente.
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