MOSTRA SP 2018 | Dia 13 – Realidade imaginada e metalinguagem
Atualizado: 17 de fev. de 2021
O cotidiano de uma mulher em um novo emprego e cidade no mineiro Temporada, a metalinguagem do baiano Ilha e o novo do Jafar Panahi, o iraniano 3 Faces ao lado do noir neon de Singapura, Uma Terra Imaginada, são os destaques premiados deste décimo terceiro dia da 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, junto com outros filmes da programação desta terça, na reta final do evento.
(Temporada, 2018)
Em determinado momento da produção nacional Temporada (2018), a protagonista coloca o seu celular dentro de um balde de ferro para ampliar o som dele e ouvir seu sertanejo – no caso, Sorte Que Cê Beija Bem, da dupla Maiara e Maraisa – enquanto faz suas coisas em sua nova casa. É uma cena que sintetiza a crônica em forma de filme que marca o cinema cotidiano de André Novais Oliveira. Em seu registro quase documental, com planos fixos, muitas vezes, abertos, e poucos giros e movimentações de câmera, sua lente prima a observação do corriqueiro, filtrando a realidade com sua discreta ficção.
Deixando um pouco de lado o seu núcleo familiar tão explorado em sua filmografia, embora sua mãe faça uma breve participação aqui, o diretor mineiro mescla atores profissionais, como Grace Passô na pele da personagem principal, com não-atores em seu segundo longa-metragem, vencedor de cinco Candangos no último Festival de Brasília, incluindo um para a atriz. Ela vive Juliana que, um bom tempo depois de ter feito o concurso, finalmente é chamada para integrar a equipe do serviço de combate a epidemias de Contagem, em Minas Gerais, se mudando sozinha para a cidade. A narrativa acompanha o seu aprendizado do serviço e a rotina dela com os novos colegas, visitando as casas de uma região do município para eliminar pontos que podem propiciar a proliferação de dengue e outras doenças, pontuados pelo humor cotidiano, especialmente do ator-personagem Russão, também premiado no evento na capital federal, sobre as dificuldades do serviço e a baixa remuneração.
Enquanto isso, no entanto, Juliana está passando por problemas no relacionamento com seu marido, que não se mudou com ela e nem aparece no longa. Imprimindo um naturalismo incrível em sua interpretação, Grace Passô delineia a personagem desde seu olhar novato, desconfiado e curioso no trabalho a uma confissão muito pessoal sobre uma perda que sofreu. Ela é o esteio do filme, que longe de arroubos e epifanias, apresenta esta temporada em que a protagonista se descobre como uma mulher independente.
> Cinesala – 30/10/2018 às 14h00
(Ilha, 2018)
Para quem está envolvido, de alguma maneira, neste mundo de fazer cinema, a primeira cena da produção nacional Ilha (2018) é um deleite em sua proposta de metalinguagem e faz este tipo de espectador ansiar pelo que vem à frente no segundo longa de Ary Rosa e Glenda Nicácio. A dupla baiana responsável por Café com Canela (2017), presente na Mostra passada, coloca um prestigiado cineasta local, Henrique (Aldri Anunciação), sendo sequestrado e levado para Ilha Grande, na Bahia, por um traficante que deseja que o diretor faça um filme de sua vida. Emerson (Renan Motta) explica isso na abertura para a sua “vítima” e para o público, que já é avisado de que tem pela frente uma obra que contém um filme fictício em si e o seu inortodoxo making of.
O rapaz, porém, é versado na linguagem cinematográfica e trava discussões estéticas e narrativas com o realizador que já demonstra um cansaço e pouca ousadia em seus trabalhos mais recentes. Assim, Ary e Glenda trabalham com a simbologia do espaço físico circunscrito desta ilha em duas chaves bem distintas. Se o isolamento inerente do local é um porto para a criação livre que se procura nas obras desta matrioska metalinguística, sua limitação física serve de alegoria para as limitações sociais de lugares que, como ali, parecem fadados ao fracasso, levando os seus habitantes ao mesmo destino.
Paralelo a isso, Henrique e Emerson desenvolvem um interesse mútuo que ultrapassa questões artísticas e segue para o campo sexual, mas, tal qual várias ideias interessantes do longa que não conseguem ser concluídas, é minada ao se incluir um passado para eles quase ao final da trama. Os diretores, que já conheciam Ilha Grande por causa de oficinas de cinema e educação que já ministraram por lá, como fica claro no desfecho, desejam falar de muitas coisas em seu projeto, mas sem dar conta de tudo, as intervenções de uma senhora gritando palavras de ordem ficam soltas, por exemplo. Assim, o cinéfilo e o profissional da área se pegam, a cada momento, querendo gostar do filme e perdoar as suas falhas, o que talvez explique o prêmio de Melhor Roteiro para a produção no Festival de Brasília – onde Aldri Anunciação também levou um Candango de Melhor Ator -, vindo mais da identificação e ousadia do texto do que de sua execução.
> Cine Caixa Belas Artes – Sala 1 Villa Lobos – 30/10/2018 às 15h30
(Se Rokh, 2018)
Existem várias ousadias intrínsecas à realização de 3 Faces (2018), desde o fato original deste ser o quarto filme do renomado cineasta Jafar Panahi enquanto está banido de filmar pelo governo iraniano. Detido em 2010 e mantido em prisão domiciliar, o diretor agora tem, ao menos, a liberdade de circular pelo país e, depois de rodar a capital no aclamado Taxi Teerã (2015), não pensa duas vezes antes de fazer um road movie no Irã, mais uma vez de maneira independente, e ainda brincar sobre o seu passaporte confiscado. O longa que foi exibido no Festival de Cannes, onde ganhou o prêmio de Melhor Roteiro, pode não ser o melhor dele, mas possui um charme que mantém suas denúncias vivas através de seu humor.
Panahi, como de costume, não somente aparece e encarna um personagem de si mesmo em seus próprios trabalhos, mas também borra os limites entre realidade e ficção. A abertura com o vídeo de celular de uma jovem, chamada Marziyeh Rezaei, pedindo socorro à famosa atriz Behnaz Jafari, já demonstra isso na metalinguagem do discurso e do dispositivo na tela. A mensagem e o desaparecimento da garota que queria ter o direito de ser atriz fazem o diretor e amigo Panahi acompanhar à célebre artista em uma viagem em busca da menina até o vilarejo onde mora em uma região montanhosa, bem afastada, no interior do Irã, utilizando a mise-en-scène automobilística que desenvolveu tão bem em Taxi Teerã para colocar sua câmera dentro do veículo e seguir a aflição de Behnaz.
Tendo o turco como idioma e mantendo tradições peculiares, a exemplo da buzina como código entre os carros que desejam passar por uma estreita estrada da região, o cineasta retira o humor das situações enquanto mergulha no âmago do pensamento de um país sobre o papel do feminino e do masculino, além da arte e de seus realizadores. Se a admiração aos forasteiros famosos se mantém até certo ponto, logo surge o preconceito arraigado contra os artistas, que se manifestou primeiro na figura reclusa de uma atriz, dançarina e poeta que foi banida, como tantos outros, após a Revolução Islâmica de 1979, assim como o machismo latente no caso da garota do vídeo. Se em um primeiro momento, parece que Panahi é uma das três faces do título, junto com Behnaz e Marziyeh, depois fica claro que é a artista perseguida na vila quem faz companhia nesse painel de gerações de mulheres que apenas queriam ter o direito de se expressar – ao mesmo tempo que o real, o ficcional e a realidade ficcionada assumem estas faces enquanto linguagem do filme.
> Reserva Cultural – Sala 1 – 30/10/2018 às 20h00
(Ava, 2017)
A tensão crescente marca a narrativa de Ava (2017), primeiro longa de Sadaf Foroughi. A jovem cineasta iraniana ultrapassa os limites de um coming of age convencional justamente ao retratar um ambiente que restringe este crescimento da adolescente em questão. Sintetizando a repressão feminina no país do Oriente Médio, esta coprodução entre Irã, Canadá – onde a diretora está baseada, atualmente – e Catar venceu o Prêmio FIPRESCI, dado pela crítica internacional no Festival de Toronto do ano passado, quando também levou a menção honrosa de Melhor Primeiro Filme Canadense.
A personagem-título, vivida intensamente pela estreante Mahour Jabbari, é uma garota iraniana de 17 anos, filha de um pai atencioso (Vahid Aghapoor), mas muito ausente por conta de suas viagens de trabalho, e de uma mãe super controladora (Bahar Noohian). O início de sua derrocada moral e emocional começa quando ela diz que vai estudar na casa de Melody (Shayesteh Sajjadi), mas sai de lá para se encontrar com um colega da aula de música, Nima (Houman Hoursan), em quem está interessada por ene motivos. Nada acontece de fato no encontro no parque – eles nem se dão as mãos –, a não ser um atraso que faz sua mãe descobrir que ela não está no lar da melhor amiga e dar origem a uma grande discussão.
Chegando ao cúmulo de levar Ava no ginecologista para verificar se ela ainda é virgem, sua mãe ainda levanta acusações à Melody e sua progenitora, porque os pais da menina estão separados, que acabam complicando a vida da melhor amiga da garota em um primeiro momento, até que a fofoca na escola exclusivamente feminina respinga gravemente em sua própria filha, com as coisas saindo do controle em um lugar onde o conservadorismo e o machismo imperam. O pai muito benevolente, por exemplo, não pensa duas vezes antes de colocar a culpa na esposa, não pelos motivos certos de sua leviandade, pelo que está acontecendo com sua rebenta. Os dois representam tantos pais que tiveram a mesma “rebeldia” ou até maior, quando adolescentes, e agora reprimem seus filhos, o que ainda revolta mais a protagonista.
O crescente de tensão que recaí sobre Ava, que em um pico de stress toma uma atitude impensada na interessante cena da tesoura, incide no público que fica preso à narrativa. Mesmo pesando a mão nos agentes que estão contra sua protagonista, o roteiro escrito pela própria Foroughi, não deixa de dar complexidade à adolescente, que também é teimosa e orgulhosa em momentos que só a prejudicam ainda mais. Contudo, é na direção que a cineasta iraniana chama mais atenção em seu début, com o uso constante de espelhos e da personagem entrando em foco em sua mise-en-scène, como se essa imagem refletida e/ou desfocada simbolizasse essa imagem que erroneamente criam da garota no decorrer da história.
> Cinesala – 30/10/2018 às 18h20
(Sofia, 2018)
A repressão às mulheres nos países em que as leis do islamismo se confundem com as leis nacionais já é conhecida – e não quer dizer que não exista em outros lugares influenciados ou não por outras religiões –, mas a Mostra é aquela oportunidade anual de ver o cinema destes locais escancarando isso como um lembrete. Do Marrocos, vem o retrato de uma jovem de 20 anos, interpretada por Maha Alemi, que, em uma refeição em família e para discutir negócios do pai, descobre que está grávida e seu filho já vai nascer. Este é só o início de Sofia (2018), primeiro longa-metragem da cineasta Meryem Benm`Barek, que recebeu o prêmio de Melhor Roteiro na seção Um Certo Olhar (Un Certain Regard) no Festival de Cannes.
A presença da prima e médica Lena (Sarah Perles) é primordial para a garota que, por questões psicológicas, acabou tendo o que se chama de “negação da gravidez”. Com a câmera na mão e um estilo naturalista especialmente neste tenso início, o filme acompanha as duas indo para o hospital e depois, por causa da lei marroquina que obriga a dar a documentação do pai da criança em 24 horas para seu registro para não responderem criminalmente, atrás de Omar (Hamza Khafif), o nome do rapaz que Sofia dá o nome depois de muito esforço. Outros vários desdobramentos se desenvolvem na trama a partir disso, mas isso nem é o melhor do roteiro premiado de Meryem, embora haja o mérito de manter essa narrativa sempre instigante.
A chave do texto está na complexidade dos personagens, em suas qualidades e defeitos neste painel construído de uma sociedade machista e com diferenças sociais profundas, desde a família classe média de Sofia à tia rica Leila (Lubna Azabal) e à classe trabalhadora representada pelo clã de Omar. O abismo é materializado na tela, por exemplo, na cena do carro emparelhado ao ônibus. Mas também destilado nas atitudes de cada um, como a da libertária Lena, que apesar de todo um ingênuo progressismo imprimidos bem por Perles ao lado do desespero de Alemi na pele da protagonista, não pensa em nada disso antes de ter o pensamento conservador de sua classe privilegiada de que dinheiro resolve tudo.
> Cine Caixa Belas Artes – Sala 1 Villa Lobos – 30/10/2018 às 19h45
(Nguoi Vo Ba, 2018)
Pouco conhecido até para os cinéfilos nível hard, é do cinema vietnamita que vem uma das produções mais belas desta Mostra, tanto visualmente quanto em sua mensagem. Relembrando aquela beleza oriental paciente que o público se acostumou a ver em filmes de época japoneses, chineses e sul-coreanos, por exemplo, A Terceira Esposa (2018) estreou mundialmente no Festival de Toronto, onde levou o Prêmio NETPAC, dedicado ao cinema asiático. No entanto, ao apresentar um excerto do cotidiano das mulheres no Vietnã do fim do século XIX, a diretora Ash Mayfair constrói um manifesto contemporâneo da força feminina resistindo a uma repressão que perdura há milênios não só naquele ponto do globo terrestre.
Inspirada nas mulheres da sua família, especialmente sua avó, como disse em entrevista ao NERVOS – que sai em breve aqui no site –, a jovem cineasta conta a história de May (Nguyen Phuong Tra My) que, aos 14 anos, se torna a terceira esposa de um rico proprietário de terras no interior do país. O filme, então acompanha a dinâmica de disputa amistosa entre as três esposas que desejam dar um herdeiro homem ao marido, além de suas filhas e outras mulheres presentes na casa, revelando aos poucos que a questão é mais profunda. Não se trata apenas de visar o poder dentro dessa estrutura familiar, mas de evitar que o mesmo destino delas se repita.
A poligamia institucionalizada e o machismo embutido naquele sistema não prejudicam apenas as mulheres, como também é tóxico aos homens, frisa Mayfair tanto no filme quanto em suas declarações. A direção de arte e figurino impecáveis ao lado da fotografia de Chananun Chotrungroj emulando pinturas contribuem para o filme se mostrar tão sensorial e sensual. No entanto, a contemplação do público se torna aflitiva a partir do momento que o seu recado vai se tornando cada vez mais pungente no crescer da narrativa e desemboca em um potente desfecho.
> Cine Caixa Belas Artes – Sala 1 Villa Lobos – 30/10/2018 às 17h30
(A Land Imagined, 2018)
A coprodução entre França, Holanda e Singapura, vencedora do Leopardo de Ouro em Locarno, neste ano, Uma Terra Imaginada (2018) é o que poderia se classificar de um noir neon do Sudeste Asiático. Ambientado na costa industrial singapurense, o cineasta local Yeo Siew Hua deve ter encantado o júri do festival suíço com o interessante estilo e estética de seu segundo longa de ficção, mas a falta de coesão narrativa de sua direção e roteiro tornam o filme muito confuso e pouco imersivo.
Em uma narrativa que desafia o espectador a entender o que é realidade, flashback, previsão futura ou delírio onírico, a trama cruza os sonhos do detetive Lok (Peter Yu) como do objeto de sua investigação, o chinês Wang Bi Cheng (Liu Xiaoyi), funcionário de uma empresa de aterramentos que está desaparecido. Soma-se ao cenário de seu trabalho e precário alojamento, uma lan house onde o investigador segue os passos do rapaz em seu interesse pela atendente do local e conversas com um jogador anônimo de videogame, cuja conexão sempre soa forçada neste quebra-cabeça do roteiro. Tudo isso pontuado por uma instigante trilha sonora de jazz que tenta delimitar ostensivamente o suspense do filme.
A obra se mostra mais interessante enquanto discute a gênese que definiria uma alma de Singapura do que como trama policial onírica. A terra imaginária do título escancara esta nação que compra areia de países vizinhos e utiliza mão-de-obra imigrante barata neste aterramentos, explorando chineses e bengalis vindos de Bangladesh, para se moldar a seu próprio gosto.
> CineSesc – 30/10/2018 às 21h40
(La Quietud, 2018)
Continuando com sua predileção por dinâmicas familiares, Pablo Trapero, diretor de O Clã (2015) e Família Rodante (2004), põe sua lente sobre os abastados Montemayor, em seu último filme La Quietud (2018). O título do longa exibido no Festival de Veneza diz respeito ao rancho de mesmo nome da família em questão, onde se passa a maior parte da trama e que desenrola de maneira paralela questões sobre a origem desta propriedade. No entanto, o nome da produção também sublinha, de forma irônica, a aparente tranquilidade que esconde segredos escusos neste núcleo familiar de classe alta.
O ataque súbito que acomete o pai Augusto (Isidoro Tolcachir), de quem a caçula e solteira Mia (Martina Gusman) é muito próxima, traz a filha mais velha Eugenia (Bérénice Bejo), diretamente de Paris, de volta ao rancho, para a alegria da mãe Esmeralda (Graciela Borges), que a tem como a favorita. A semelhança entre as duas irmãs, que não são gêmeas, é gritante e, especialmente, desconcertante no início, quando compartilham seus desejos escondidos em uma relação fraternal muito próxima, quase incestuosa, mas também competitiva. Desse relacionamento particular às relações extraconjugais e outras revelações posteriores, dominação e repressão sexual conduzem a narrativa de várias formas, além da política argentina, em particular, resquícios da ditadura no país pontuando desdobramentos importantes.
Trapero não esconde que se trata de um grande melodrama latino mais picante, mas sua narrativa novelesca é, no mínimo, envolvente. E isso não quer dizer que o cineasta deixe à parte seu lado autoral, assinalado nos pequenos apagões que atingem a propriedade, representando a decadência dessa aristocracia argentina e também pautando o emocional dos personagens. Gusman e Bejo são hipnotizantes na pele das protagonistas, mas, a partir de certo ponto, é Graciela Borges quem rouba a cena com sua performance arrasadora como a mãe deste clã.
> Espaço Itaú Frei Caneca 1 – 30/10/2018 às 21h30
> CineSesc – 31/10/2018 às 20h00
(Chica Noc, 2017)
Outro exemplar da excelente safra de filmes poloneses presentes na seleção desta Mostra, que conta com os marcantes Guerra Fria (2018) e Fuga (2018) –, Noite Silenciosa (2017) poderia muito bem ser um filme natalino hollywoodiano, em que uma família se reúne para a ocasião e as coisas dão errado. No entanto, uma produção norte-americana seria incapaz de adentrar e compreender uma peculiaridade do primeiro longa de Piotr Domalewski. O fato de quase todos os homens do clã retratado, assim como tantos outros no país, precisarem ir ao exterior para conseguir trabalho e sustentar a família que permaneceu marca um comentário regional sobre a emigração na Polônia, assim como serve de motor para as implicações disso na dinâmica familiar na tela.
O jovem cineasta se apropria, sem copiar, do estilo e humor negro desse cinema neorrealista do Leste Europeu, especialmente da Nouvelle Vague Romena, de quem a obra guarda muitas similiaridades com Sieranevada (2016). Bem mais curto em sua duração que o longa de Cristi Puiu, a narrativa que vai crescendo aos poucos – na história polonesa, particularmente do segundo ato para frente, com a ceia que aqui se realiza de fato –, conjuntamente com a sensação de claustrofobia dentro daquele ambiente familiar. Domalewski, porém, tem sua própria visão do assunto e a apresenta desde o primeiro quadro, quando a imagem da câmera digital do protagonista abre a produção: o ecrã como intermediário já aponta a representação como o ingrediente deste jantar em família, diferenciando aquilo que se deseja mostrar aos parentes e o que realmente se sente.
O dispositivo é empunhado várias vezes por Adam (Dawid Ogrodnik), porque o rapaz que retorna da Holanda para passar com o Natal no interior da Polônia, com os pais, irmãos, avô, tias e primos, deseja guardar os vídeos como lembrança para sua descendência. A namorada que deixou no país está grávida e ele deseja, embora tenha dificuldades para conversar sobre isso e outros assuntos com seus familiares, acertar tudo para começar a vida de vez fora dali. Como o público já pode esperar, os planos dele não saem como imaginado e a noite, que nada tem de silenciosa, surpreende ao abordar, além dessas questões socioeconômicas pertinentes aos polacos e nações na mesma situação e essa figura paterna distante, alcoolismo, violência doméstica contra a mulher e até maconha, mas tendo as complicações amorosos como a pimenta desta receita típica.
> Espaço Itaú Augusta 1 – 30/10/2018 às 14h00
> Espaço Itaú Frei Caneca 2 – 31/10/2018 às 22h00
(Wildlife, 2018)
Há grandes incêndios nas florestas e montanhas em torno da cidade que serve de cenário para Vida Selvagem (2018), mas há outro mais silencioso e invisível ruindo a estrutura familiar dos protagonistas do filme que marca a estreia na direção do ator Paul Dano. Vindos das páginas do livro homônimo de Richard Ford, publicado em 1990, os Brinson são recém-chegados em Montana, o que não é uma novidade na sua rotina de mudanças, como representantes de uma classe média baixa norte-americana que, em pleno ano de 1960, precisa se virar de algum jeito. Mas a situação se torna complicada mesmo quando o Jerry (Jake Gyllenhaal) perde o emprego e, num misto de orgulho e apatia, vendo a esposa Jeanette (Carey Mulligan) e o filho adolescente Joe (Ed Oxenbould) procurando trabalho, decide partir para combater os incêndios na região.
O roteiro adaptado por Dano e Zoe Kazan, sua mulher e também atriz, constrói esse desmoronamento domiciliar através do olhar do menino de 14 anos, que tem uma relação de admiração com o pai e a mãe, mas, neste coming of age de mão dupla, precisa amadurecer rapidamente enquanto suas figuras paternas passam a tomar atitudes mais infantis. Jeanette se desespera com a partido do marido, perde seu otimismo habitual e, na ânsia de salvar a si e a seu filho, encontra uma maneira fácil e escusa para se sustentarem. Ao mesmo tempo, passa a se questionar sobre suas escolhas de vida e a mãe de apenas 34 anos já com um filho adolescente tenta recuperar o tempo perdido. Chega ao ponto dela, tão perdida no que está fazendo e no que fez até então, pedir ajuda ao garoto sobre um caminho melhor para seguir, sendo que é o menino que está, com toda razão, quase a ponto de pedir socorro.
Mulligan está soberba nesse papel que intercala fragilidade e coragem como essa jovem mãe sessentista que deseja tomar as rédeas de sua própria vida sem saber qual direção tomar. No entanto, quem segura o longa é Oxenbould, o menino de Alexandre e o Dia Terrivel, Horrível, Espantoso e Horroroso (2014) que cresceu bastante e dá conta da tarefa sob o grande controle narrativo e emocional da direção de Dano, muito segura em seu début. Com planos fixos dominando a tela frente a leves zooms em momentos-chave, o cineasta estreante transporta o ofício de assistente da loja de fotografias do jovem para a linguagem do filme, que encerra literalmente um retrato doloroso dessa família.
> Cinearte Petrobras 1 – 30/10/2018 às 18h40
(El Ángel, 2018)
É com o jovem protagonista dançando ao som de um rock argentino, num estilo parecido ao da nossa Jovem Guarda, mas em uma casa que ele invadiu, que Luis Ortega abre e encerra o seu novo longa, O Anjo (2018). Escolhido como o representante da Argentina na disputa por uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro – estatueta que já foi conquistada pelos vizinhos com O Segredo dos Seus Olhos (2009) –, a produção traz para as telas uma cinebiografia do mais jovem assassino em série da História da Argentina. O estreante no cinema Lorenzo Ferro é quem encarna o rapaz que foi apelidado pela mídia local, no início dos anos 1970, de "Anjo Negro" ou "Anjo da Morte", com sua aparência angelical de cachinhos loiros e ficha corrida demoníaca.
Tanto a música quanto o trabalho competente da direção de arte, figurino, cabelo e maquiagem promovem a ambientação da história um pouco ficcionalizada deste jovem de 17 anos, que tinha como hobbie invadir casas e roubar alguns pertences para dar de presente aos pais, namorada, amigos ou a si mesmo. Mas quando conhece e faz amizade de um jeito, no mínimo, inusitado com o colega de escola Ramón (Chino Darín), aprende a manejar uma arma com o pai dele e, juntos, começam a planejar roubos maiores e que acabam se tornando mais letais. Ortega faz questão de frisar a tensão sexual entre os parceiros de crime, frisando o interesse de Carlitos pelo cúmplice – que, na vida real era Jorge Ibáñez e também teve o mesmo destino duvidoso – a partir das dúvidas levantadas sobre a sua sexualidade na época.
Apesar das quase duas horas de filme, a duração dele não é sentida graças a sua narrativa envolvente embora convencional. Mas quando chega o desfecho, a sensação de que faltou algo é iminente. Assim como o seu protagonista que dança, a obra trata tudo como uma diversão de um jovem rebelde, sem que o público veja, de fato, a face mais demoníaca deste anjo, que tem em sua ficha criminal, por exemplo, o crime de estupro também.
> Espaço Itaú Augusta 1 – 30/10/2018 às 18h45
> Reserva Cultural – Sala 1 – 31/10/2018 às 14h00
(Can You Ever Forgive Me?, 2018)
É, no mínimo, curioso que uma autora de biografias ganhe sua própria cinebiografia, como Poderia Me Perdoar? (2018) faz ao recontar a história real da escritora Lee Israel em seu ponto mais crítico: quando, estando na sua pior, encontrou a saída na falsificação de cartaz assinadas por personalidades. Trazendo como destaque a interpretação de Melissa McCarthy na pele da autora, com a atriz de comédias em um drama, ou melhor, uma comédia dramática melancólica, o filme honra uma característica de sua personagem real ao priorizar o feminino desde sua equipe. A produção tem a direção de Marielle Heller, em seu segundo longa depois do début O Diário de uma Adolescente (2015), e o roteiro de Nicole Holofcener, diretora de À Procura do Amor (2013) e Gente de Bem (2018), ao lado do ator Jeff Whitty.
O público conhece Lee em 1991, quando, depois de relativo sucesso com suas biografias de importantes nomes femininos das artes, não consegue emplacar um novo livro e ainda perde o emprego. Uma solitária que apenas gosta de seu gato, a narrativa logo a apresenta que como uma pessoa antissocial que não se ajuda e, ao mesmo tempo, alguém que não se rende a jogar o jogo da falsidade para se tornar mais conhecida e assim receber mais atenção de sua agente (Jane Curtin) e dinheiro das editoras. É exatamente em outro tipo de falsidade, a ideológica que é crime, que ela enxerga sua salvação ao se deparar com uma carta assinada por Fanny Brice perdida entre os livros que pesquisava para a sua biografia da comediante.
Escrevendo como se fosse essas personalidades, quase como uma ghostwriter sem ser solicitada, o trabalho lhe dá orgulho e a chance de ser lida, mesmo escondendo a sua voz, pela primeira vez em muito tempo, fazendo com que ela evite questionamentos morais. O que Heller não poupa ao próprio mercado de relíquias que muitas vezes faz vista grossa a falsificações pelo mesmo motivo que Israel: dinheiro. Além de versar sobre essas preocupações artísticas, a obra encontra o seu fio condutor na amizade improvável de Lee com o junkie traficante Jack Hock (Richard E. Grant, também ótimo), um escritor inglês que também é homossexual e marginalizado como ela nesta cena literária nova-iorquina que baba por Tom Clancy, como o longa destaca, fazendo da misantropia dos dois personagens e do texto uma forma de encontrar o que há de mais humano dentro do filme.
> Espaço Itaú Pompeia 1 – 30/10/2018 às 21h00
(Tlmočník / Dolmetscher, 2018)
De modo geral, crescemos acostumados a ver o nazismo pela lente de Hollywood até mais do que pelos olhos da própria Alemanha. Mas alguns cinéfilos devem ter reparado uma tendência atual do cinema de outros países europeus, especialmente do Leste Europeu, de revisitar o período de ocupação nazista em seu território, a exemplo do polonês Ida (2013), e examinar sua parcela de culpa nos males causados por eles, como o húngaro 1945 (2017) e o austríaco A Valsa de Waldheim (2018), documentário também presente nesta Mostra. Representante da Eslováquia nesta 42ª edição do evento e também na corrida para uma possível vaga entre os indicados a Melhor Filme Estrangeiro no próximo Oscar, o novo longa de Martin Šulík, O Intérprete (2018), vem fazer isso para a nação que, na época e até 1992, fazia parte da Tchecoslováquia.
O cineasta eslovaco, um velho conhecido dos mostreiros, trata do assunto ao juntar as duas pontas da problemática. Ali Ungár (Jirí Menzel, ator e diretor que conseguiu um Oscar para a Tchecoslováquia com Trens Estreitamente Vigiados, de 1966), um intérprete de 80 anos de idade, viaja para Viena, na Áustria, atrás do ex-oficial da SS, o exército nazista, que acredita ser o responsável pela morte de seus pais, mas ao bater na sua porta, encontra apenas o filho do provável algoz de sua família, Georg (Peter Simonischek, o pai do longa alemão Toni Erdmann, de 2016). Este, porém, vai à Bratislava, capital da Eslováquia, pedir ao senhor de origem judia para ser seu guia e intérprete em uma viagem pelo país para explorar os lugares nos quais o pai ficou durante a II Guerra Mundial.
Diferente da trilha sonora com o mesmo arranjo repetido insistentemente, o filme varia seu tom entre o drama e a comédia ao tirar humor de uma narrativa da relação entre opostos bem comum, no caso, de senhor comedido, correto e sério com um bon-vivant, mulherengo e desinteressado por sua própria história, até então. No entanto, conforme a câmera de Šulík vai, em alguns momentos, se aproximando lentamente dos personagens em travellings, o texto do roteiro escrito por ele e Marek Leščák faz o mesmo não partir para algo de mau gosto que poderia vir ao tratar tal assunto de maneira tão leviana. Com exceção de uma revelação final que soa desnecessária, a obra trata de maneira sincera sobre a velhice, investiga como a relação dos dois protagonistas – vividos em oposta sintonia por Menzel e Simonischek em grande forma – molda o relacionamento deles com os filhos e confere camadas de complexidade aos envolvidos, mesmo que indiretamente, no nazismo, mas tentando evitar a armadilha de comparar e tornar equivalentes as dores do filho das vítimas com o do filho do assassino. Ambos sofrem, mas de modo diferente e é preciso cada um dos lados entender isso.
> Cinearte Petrobras 1 – 30/10/2018 às 20h50
(Odysseya Petra, 2018)
Estreia na direção de longas da dupla Anna Kolchina e Alexey Kuzmin-Tarasov, A Odisseia de Peter (2018) é aquele tipo de filme que explora o imaginário infanto-juvenil, mas que tem uma visão adulta sobre a imaginação dos jovens. O Petya (Dmitriy Gabrielyan) em questão, que é o Peter do título traduzido, é um menino russo de 12 anos vai morar com os pais na Alemanha e tem dificuldades de se integrar à nova realidade, sofrendo também com o bullying dos novos colegas, se refugiando nas recordações muito saudosas da avó com quem mais convivia em um cenário interiorano nos arredores de Moscou. Assim, as sequências na Rússia fluem com a steady cam e uma aura de sonho e lembrança no branco esfumaçado da fotografia, enquanto a ambientação na Alemanha traz uma câmera na mão nervosa, inquieta como o menino naquele novo lugar em que ele não se adapta.
A referência à Odisseia de Homero narrando a volta para casa de Ulisses é direta nesta odisseia russa, mas o filme se ressente justamente por esse trecho mais aguardado e promissor vir apenas no terceiro ato, quando a narrativa já tinha perdido sua potência. Por fim, a trilha sonora traz coisas interessantes como uma espécie de Beck ou Moby russo.
> Espaço Itaú Frei Caneca 4 – 30/10/2018 às 20h30
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