MOSTRA SP 2018 | Dia 12 – Laços mais que fraternais
Atualizado: 17 de fev. de 2021
A rivalidade e o desejo mútuo aprofundam as relações fraternais neste 12º dia da 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, com o filme argentino La Quietud, novo longa de Pablo Trapero que tem sua première hoje, e do ganês O Enterro de Kojo, début do artista Blitz Bazawule que será exibido em sua última sessão nesta segunda, entre outros destaques desta reta final da Mostra SP:
(La Quietud, 2018)
Continuando com sua predileção por dinâmicas familiares, Pablo Trapero, diretor de O Clã (2015) e Família Rodante (2004), põe sua lente sobre os abastados Montemayor, em seu último filme La Quietud (2018). O título do longa exibido no Festival de Veneza diz respeito ao rancho de mesmo nome da família em questão, onde se passa a maior parte da trama e que desenrola de maneira paralela questões sobre a origem desta propriedade. No entanto, o nome da produção também sublinha, de forma irônica, a aparente tranquilidade que esconde segredos escusos neste núcleo familiar de classe alta.
O ataque súbito que acomete o pai Augusto (Isidoro Tolcachir), de quem a caçula e solteira Mia (Martina Gusman) é muito próxima, traz a filha mais velha Eugenia (Bérénice Bejo), diretamente de Paris, de volta ao rancho, para a alegria da mãe Esmeralda (Graciela Borges), que a tem como a favorita. A semelhança entre as duas irmãs, que não são gêmeas, é gritante e, especialmente, desconcertante no início, quando compartilham seus desejos escondidos em uma relação fraternal muito próxima, quase incestuosa, mas também competitiva. Desse relacionamento particular às relações extraconjugais e outras revelações posteriores, dominação e repressão sexual conduzem a narrativa de várias formas, além da política argentina, em particular, resquícios da ditadura no país pontuando desdobramentos importantes.
Trapero não esconde que se trata de um grande melodrama latino mais picante, mas sua narrativa novelesca é, no mínimo, envolvente. E isso não quer dizer que o cineasta deixe à parte seu lado autoral, assinalado nos pequenos apagões que atingem a propriedade, representando a decadência dessa aristocracia argentina e também pautando o emocional dos personagens. Gusman e Bejo são hipnotizantes na pele das protagonistas, mas, a partir de certo ponto, é Graciela Borges quem rouba a cena com sua performance arrasadora como a mãe deste clã.
> Cinearte Petrobras 1 – 29/10/2018 às 21h15
> Espaço Itaú Frei Caneca 1 – 30/10/2018 às 21h30
> CineSesc – 31/10/2018 às 20h00
(El Ángel, 2018)
É com o jovem protagonista dançando ao som de um rock argentino, num estilo parecido ao da nossa Jovem Guarda, mas em uma casa que ele invadiu, que Luis Ortega abre e encerra o seu novo longa, O Anjo (2018). Escolhido como o representante da Argentina na disputa por uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro – estatueta que já foi conquistada pelos vizinhos com O Segredo dos Seus Olhos (2009) –, a produção traz para as telas uma cinebiografia do mais jovem assassino em série da História da Argentina. O estreante no cinema Lorenzo Ferro é quem encarna o rapaz que foi apelidado pela mídia local, no início dos anos 1970, de "Anjo Negro" ou "Anjo da Morte", com sua aparência angelical de cachinhos loiros e ficha corrida demoníaca.
Tanto a música quanto o trabalho competente da direção de arte, figurino, cabelo e maquiagem promovem a ambientação da história um pouco ficcionalizada deste jovem de 17 anos, que tinha como hobbie invadir casas e roubar alguns pertences para dar de presente aos pais, namorada, amigos ou a si mesmo. Mas quando conhece e faz amizade de um jeito, no mínimo, inusitado com o colega de escola Ramón (Chino Darín), aprende a manejar uma arma com o pai dele e, juntos, começam a planejar roubos maiores e que acabam se tornando mais letais. Ortega faz questão de frisar a tensão sexual entre os parceiros de crime, frisando o interesse de Carlitos pelo cúmplice – que, na vida real era Jorge Ibáñez e também teve o mesmo destino duvidoso – a partir das dúvidas levantadas sobre a sua sexualidade na época.
Apesar das quase duas horas de filme, a duração dele não é sentida graças a sua narrativa envolvente embora convencional. Mas quando chega o desfecho, a sensação de que faltou algo é iminente. Assim como o seu protagonista que dança, a obra trata tudo como uma diversão de um jovem rebelde, sem que o público veja, de fato, a face mais demoníaca deste anjo, que tem em sua ficha criminal, por exemplo, o crime de estupro também.
> Cinesala – 29/10/2018 às 20h00
> Espaço Itaú Augusta 1 – 30/10/2018 às 18h45
> Reserva Cultural – Sala 1 – 31/10/2018 às 14h00
(Tajnata Sostojka, 2017)
A precariedade da vida dos personagens do primeiro longa de ficção do jovem diretor Gjorce Stavreski reflete a de um país em O Ingrediente Secreto (2017), filme pré-indicado pela Macedônia para disputar uma vaga no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Sem dinheiro para o tratamento do pai (Anastas Tanovski), que está com um grave câncer de pulmão, a jornada do jovem mecânico Vele (Blagoj Veselinov) revela um sistema de saúde deficiente, com medicamento caros, cujos preços sobem a bel prazer, e que não garante direitos básicos, levando tantos, particularmente os esquecidos aposentados e pensionistas, a procurar refúgio em curandeiros, por exemplo. É o retrato de uma nação em eterna transição, como diz o jovem a uma amiga, tal qual a vizinhança, pertencente à ex-Iugoslávia ou não, que saiu da Cortina de Ferro do mundo comunista que havia se instalado no Leste Europeu, mas não consegue se adaptar à logica capitalista e globalizada do resto do continente.
A saída fácil, ou não tanto assim, que Vele encontra é quando, em seu próprio trabalho em uma espécie de estaleiro e manutenção de trens sucateados, encontra um pacote de maconha escondido por traficantes. Falhando na tentativa de vender a droga, o rapaz, então, faz uma receita de bolo com maconha para usar as propriedades terapêuticas da erva e aliviar as dores do pai doente.
A situação, é claro, gera inúmeras confusões com os verdadeiros donos do pacote de cannabis na narrativa que se estabelece como uma comédia de erros discreta em sua fusão com o drama. Apresentando o naturalismo e o humor negro peculiares do cinema balcânico em lidar com suas misérias, cujo primeiro e maior expoente contemporâneo se encontra na Nouvelle Vague Romena, o filme recaí em soluções fáceis de dramédias hollywoodianas em seu desfecho. Contudo, a alma da obra reside na difícil relação entre pai e filho, com suas questões mal resolvidas no passado.
> Espaço Itaú Frei Caneca 2 – 29/10/2018 às 19h50
As Quatro Irmãs (2018)
Vera Holtz e as suas irmãs mais velhas Teresa, Rosa e a caçula Regina são as estrelas de As Quatro Irmãs (2018), novo longa do prolífico Evaldo Mocarzel que não se encaixa bem em nenhum rótulo. Utilizando-se de uma proposta ficcional e um dispositivo documental, o filme acompanha esta atriz com lapsos de memória de volta às suas raízes interioranas, voltando a conviver com as irmãs no casarão da família em Tatuí e passeando por outros lugares-chave da vida dela. Entretanto, aproveitando a base de formação dela em artes plásticas – tanto que a artista Lea van Steen faz a montagem – e um caminho adotado no anterior Até o Próximo Domingo (2017), o diretor faz da performance uma via para decifrar a sua personagem-objeto.
Em uma coletiva de imprensa na exibição da produção aos jornalistas, Vera Holtz afirmou que falar de família e pertencimento sempre foram um norte em sua carreira. A maneira, aliás, com que o cineasta costura certos recursos para contar sua história remonta a diretores teatrais que, direta ou indiretamente, passaram pela trajetória da atriz, como Antônio Abujamra, Gerald Thomas e Bertolt Brecht. Em um desses momentos, aliás, ela ficou impressionada do quão parecida é com sua mãe. "Sempre guardo um pouco da memória física das pessoas que eu perco pelo vestuário", confessou aos jornalistas.
Para dar vida o seu roteiro com “um pé no psicodrama”, Mocarzel disse que teve o desafio de conduzir não atores e uma atriz lúcida, destacando o trabalho “sem truques” de Teresa, que faleceu em julho passado. Contudo, além da ligação fraternal, o diretor está interessado na relação conturbada de Vera com a autoridade paterna que, segundo ele, pode ser nefasta às vezes. Ele declara que o filme precisava de algum conflito e não ser apenas a egotrip de uma artista, mas, em certo ponto, aconteceu a “irrupção do real”, com Holtz voltando a ficar menstruada aos 64 anos de idade e lhe causando um susto.
O longa pontua bem essa diferença entre a memória fragmentada dela e a das irmãs, e como a maneira como ela guardou essas lembranças dessa rígida figura paterna definiram a sua vida e seus relacionamentos amorosos inclusive. Também explicou que quando conseguiu finalmente conseguiu sua liberdade econômica, seu pai se tranquilizou e que, uma vez em depoimento ao Domingão do Faustão, ele disse que “a Vera não me deu trabalho, me deu saudade”. O seu espírito artístico é que se diferenciava naquele cenário do interior paulista e fazia até sua tia aconselhar de maneira simples a sua mãe: "Teresinha, imagina que tem um monte de vaca, a Vera é uma vaca que muge diferente", brincou a atriz, falando também que os pais, já falecidos eram justamente aqueles para quem ligava sempre que tinha alguma novidade para contar a alguém. Agora, conversa com as irmãs no Facetime.
O preto e branco que surge em vários momentos do longa nem sempre, especialmente no início, é belo, mas os tons de branco mais predominantes nele conversam com os “brancos de memória” de Vera e um certo vazio existencial que paira neste retrato dela. Um deles é quando as irmãs vão para a casa de praia delas e Mocarzel junto com o clima do dia transformam Mongaguá em uma Ilha de Faro. Isso porque o cineasta declara que “parasequenciou” filmes de Ingmar Bergman, como Persona (1966) e Monika e o Desejo (1953), além de Os Incompreendidos (1959), de François Truffaut, e Acossado (1960), de Jean-Luc Godard.
> Cinearte Petrobras 2 – 29/10/2018 às 16h00
(Rafiki, 2018)
Um achado da mostra Un Certain Regard do último festival de Cannes, Rafiki (2018) é um filme que gera curiosidade desde o primeiro momento que o cinéfilo tem contato, por se tratar de um exemplar recente de uma cinematografia que não se tem muito acesso aqui: a do Quênia. Não bastasse isso, a diretora Wanuri Kahiu apresenta um olhar renovado para a juventude queniana, infundindo seu segundo longa de um colorido que não vem apenas de cores primárias, mas também do neon, com predominância do rosa na sua paleta de cores. Aplicando uma estética de videoclipe à produção que já conta com nomes da cena pop local na trilha sonora, a cineasta deixa isso mais evidente nas cenas de dança da jovem e estilosa Ziki (Sheila Munyiva), remetendo alguns espectadores até a alguns segmentos do filme-clipe Dirty Computer da Janelle Monáe.
As suas coreografias também hipnotizam a protagonista Kena (Samantha Mugatsia), uma tomboy da periferia da capital Nairobi, embora ninguém ao seu redor a veja dessa forma. Até que a proximidade das duas gere fofoca, caracterizada na dona de uma barraca de lanches e sua filha, e desconforto no microcosmo apresentado pelo longa baseado em um conto da escritora ugandense Monica Arac de Nyeko. Comparado com outros filmes LGBT, não há muita originalidade nesta história, cujo romance até tem toques de Romeu e Julieta com as personagens sendo filhas de políticos rivais que estão em plena disputa nas eleições locais, além do tom de tragédia que acompanha muitos longas do gênero, especialmente lésbicos.
O preconceito e a homofobia ficcionais, porém, não são infundadas quando a própria produção foi banida de seu país de origem, onde a homossexualidade é criminalizada. Mas ainda que não houvesse esse tempero externo, o simples fato de ser um filme queer africano já gera interesse, enquanto a ótima construção do casal e a química visível das atrizes jé suficiente para se encantar por Rafiki. A obra ainda ganha mais contornos em seus comentários sociais como do pai mais compreensivo do que a mãe religiosa, que se refugiou na fé intransigente após o ex-marido se separar dela e deixá-la em má situação perante a comunidade; ou nas diferenças de classe, mesmo num gueto de Nairobi e que a riqueza ali pareça pouca coisa para nossos padrões.
> Espaço Itaú Frei Caneca 3 – 29/10/2018 às 13h30
(The Burial of Kojo, 2018)
Representante do longínquo, tanto fisicamente quanto em termos de conhecimento, cinema de Gana, O Enterro de Kojo (2018) é um filme que estampa dualidades de várias formas, nem sempre eficientes, mas honestas o suficiente para o espectador relevar suas falhas e dar uma chance a sua história. Trata-se do primeiro longa-metragem de Blitz Bazawule, ganês que mora nos Estados Unidos, mas que, por seu trabalho como músico de hip hop, é conhecido pela alcunha de Blitz The Ambassador. Talvez, essa dupla identidade influencie no fato da produção parecer ser comandada por dois diretores diferentes.
A história de longa disputa fraternal de Kojo (Joseph Otsiman) e seu irmão Kwabena (Kobina Amissah-Sam), que teve como ápice um acidente num casamento, é dependente da narração da filha do protagonista, Esi (Ama K. Abebrese, como adulta na voz off, e Cynthia Dankwa como a criança da trama) para tentar versar – às vezes, com sucesso, outras não – sobre dores e o sentimento de culpa bem reais em conjunto ao mundo mágico que une um imaginário infantil com crenças espirituais locais. Existe a realidade que conhecemos, o Reino do Meio, um mundo de cabeça para baixo onde vagam mortos que ainda não entraram na eternidade, e pássaros que trazem mensagens diferentes através dos sonhos da menina. Com uma estética praticamente videoclíptica, Blitz captura com beleza ímpar as imagens em slow motion para criar esta atmosfera onírica, contrastando fortemente com o amadorismo de câmera trêmula, até nos zooms, quando precisa lidar justo com a parte mais comum da narrativa.
> Espaço Itaú Augusta Anexo 4 – 29/10/2018 às 14h00
(Boening, 2018)
O título do novo filme de Lee Chang-Dong pode sugerir algo explosivo, mas a verdade é que Em Chamas (2018) só chega a este ponto depois de uma paciente fervura em uma narrativa cuja ebulição vem gradualmente. A maneira como o cineasta sul-coreano conduz isso ao adaptar o conto Queimar Celeiros (1993), do escritor japonês Haruki Murakami, chamou a atenção dos críticos internacionais no Festival de Cannes, que lhe deram o prêmio FIPRESCI. Por tabela, lhe garantiu sua escolha como o candidato da Coreia do Sul na disputa por uma vaga no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
O thriller começa com o reencontro do entregador e aspirante a escritor Jongsu (Yoo Ah-In) e com a promotora de promoções de outra loja Haemi (Jun Jong-Seo). Os dois cresceram na mesma região e passam a se encontrar outras vezes, até que ela faz a sua tão sonhada viagem para a África e, na volta, traz na bagagem o bem-sucedido Ben (Steven Yeun). A tensão sexual e os ciúmes vão crescendo entre o trio, com um desaparecimento elevando isso ainda mais na segunda metade de suas duas horas e meia de duração.
Este crescente é pontuado pela trilha sonora de Mowg que inclui através de instrumentos típicos uma sonoridade oriental no suspense de suas composições. Vários elementos instigam leituras no decorrer da trama, a exemplo do gato imaginário, mas o que ganha mais destaque é o uso do sol para graduar esse “aquecimento narrativo” assim como a leitura das diferenças de classe na sociedade sul-coreana. Para coroar, o clímax arrebatador ainda entra no hall daqueles finais que se pode duvidar se ocorreu na realidade ou é fruto da imaginação do protagonista.
> Espaço Itaú Pompeia 1 – 29/10/2018 às 21h00
> Cinearte Petrobras 1 – 31/10/2018 às 14h00
(O Olho e a Faca, 2018)
O montador Paulo Sacramento está estabelecendo sua carreira como diretor de longas-metragens apostando em frentes bem diferentes. Seu novo filme O Olho e a Faca (2018) carrega uma estética próxima à documental no registro do dia-a-dia de uma plataforma de petróleo, que remete à sua estreia com o documentário fundamental O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), e o gosto por simbolismos vistos a exaustão no seu primeiro longa ficcional Riocorrente (2013) e que se acentuam mais ao final deste último trabalho, mas o seu cerne é de uma narrativa convencional de ficção. Na trama, Rodrigo Lombardi vive Roberto, que entre idas e vindas da plataforma petrolífera onde trabalha e a família que deveria ser o seu porto seguro, está em crise.
Em alto mar, o ambiente profissional exala tensão após um acidente com o antigo supervisor Zé Carlos (Caco Ciocler) e uma provável promoção para o cargo que ficou vago. Em terra firme, é um pai carinhoso com o caçula, mas não supre a ausência com o mais velho; enquanto também é um filho brigado com o pai, um marido displicente e que trai a esposa (Maria Luísa Mendonça), com quem mora em um grande apartamento de classe média alta em São Paulo. Com essa descrição, o roteiro não é capaz de criar empatia pelo protagonista nem de desenvolver os outros personagens - especialmente, os poucos femininos que existem - que orbitam ao seu redor.
Água e fogo, elementos já presentes na metrópole em ebulição de Riocorrente, retornam para construir visual e simbolicamente a confusão mental de Roberto, algo do qual a direção de Sacramento tem tato para fazer, embora exagere aqui ao frisar o corvo a todo momento para o espectador. No entanto, o diretor se perde justamente no "feijão com arroz" ficcional, naquilo que dá corpo à narrativa. Junto com problemas técnicos que devem ter exigido a dublagem de algumas sequências na plataforma, sua mise-en-scène e direção de atores pecam em cenas de briga, por exemplo, e fazem de O Olho e a Faca, que também é uma coprodução da HBO e deve ir em breve para a programação do canal, um filme abaixo do que o cineasta já entregou.
> PlayArte Marabá – Sala 4 – 29/10/2018 às 16h40
(Den Skyldige, 2018)
Escolhido como representante da Dinamarca na corrida do Oscar de Filme Estrangeiro do ano que vem, Culpa (2018) é aquele filme que vai arrebatar a plateia e, provavelmente, crescer no boca-a-boca entre os mostreiros, assim como Custódia (2017) fez na edição passada. Em seu primeiro longa-metragem, o dinamarquês Gustav Möller provoca sensações e navega até por temáticas que recordam o filme do francês Xavier Legrand, por exercer a mesma capacidade narrativa de manter o espectador tenso e em suspense do início ao fim. Não à toa, a produção venceu prêmio da audiência dos festivais de Sundance e Roterdã.
Mesclando esse controle e efeito narrativo a uma trama que também lembra o thriller Por um Fio (2002), sem aquelas interferências externas, troca-se a cabine telefônica onde Colin Farrell ficava direto naquela história pela central de emergência de Copenhague, acompanhando o turno, que se torna até extra, do policial Asger Holm (Jakob Cedergren, excelente e preciso nas nuances deste personagem) lá, onde o longa se passa inteiramente durante os seus 90 minutos. A escalada de tensão começa com a ligação de uma mulher pedindo socorro disfarçadamente por estar em mãos de um homem. Mais alguns telefonemas, inclusive para a pequena filha dela, e o atendente descobre logo quem é este homem. Só que isso não é um alívio, apenas mais uma crescente no filme, cujas viradas vem num rígido e paciente desvelar da trama, embora o jovem e talentoso diretor use a luz vermelha, tal qual Joe Wright no recente O Destino de uma Nação (2017), em um momento de urgência raivosa, ainda antes do clímax arrebatador.
No entanto, se no sucesso de Joel Schumacher o perigo estava à espreita do protagonista lá fora da cabine, no filme dinamarquês, ele se encontra mais dentro da psique de Asger. O espectador sabe brevemente que aquele turno acontece na véspera de um julgamento sobre algum incidente que jogou este policial para esse serviço interno, mas somente o compreende aos poucos. Mantendo uma tradição do cinema escandinavo de abordar questionamentos morais de maneira tão eficiente, Möller ainda trata de imigração e preconceito nas entrelinhas e de maneira mais direta a questão da saúde mental, mas tem no exercício da culpa e sua predileção em se acumular o norte desta obra.
> Cinearte Petrobras 1 – 29/10/2018 às 17h30
(Lean on Pete, 2017)
Há uma América diferente, aquela que não quer ser vista pelos próprios norte-americanos e que é destacada pelo olhar estrangeiro do britânico Andrew Haigh em A Rota Selvagem (2017). Presente na seleção do Festival de Toronto do ano passado, o longa mais recente do diretor de 45 Anos (2015) aproxima o seu foco dos Charleys que coexistem ao redor deles – e de nós também – e não se dá conta. O garoto do filme é vivido por Charlie Plummer – que não é parente do Christopher Plummer –, cujo tour de force que internaliza com naturalismo no protagonista é a principal qualidade e atrativo da produção.
Adaptando o romance Leon on Pete (2010) de Willy Vlautin, Haigh gasta um bom tempo contextualizando a relação de Charley com o pai (Travis Fimmel) e com o cavalo Leon on Pete, que conhece ao começar a trabalhar com Del (Steve Buscemi) que treina cavalos de corrida. Várias desventuras na primeira metade da história farão o adolescente de apenas 15 anos partir de Portland para o estado de Wyoming em busca de sua tia (Alison Elliott), com que estabeleceu algum vínculo materno durante a sua infância. O que não quer dizer que outras não ocorrem na segunda parte, quando o que parece ser um tradicional drama de cavalos se torna também um road movie e a narrativa já sofre com a longa duração do que seria um filme por si só em sua primeira hora.
A obra possui igualmente toques de um faroeste desolador, com as paisagens descampadas belamente fotografadas por Magnus Nordenhof Jønck, e especialmente um coming of age. A transformação para uma vida adulta aqui vem de maneira precoce e através do sofrimento, que vão aos poucos recrudescendo o garoto, enquanto ele luta pela sobrevivência e daqueles que ama em quase um conto de amadurecimento. No entanto, sem sempre conseguir salvá-los ou a si próprio de um mundo egoísta e mau, acumula perdas que fazem alguns espectadores se questionarem se o cineasta apenas chega perto ou ultrapassa o limite da exploração da miséria.
> Reserva Cultural – Sala 1 – 29/10/2018 às 21h00
> Espaço Itaú Frei Caneca 1 – 31/10/2018 às 19h30
(BlacKkKlansman, 2018)
Em seu novo filme, o cineasta Spike Lee versa sobre o papel do cinema na manutenção ou enfrentamento de uma desigualdade racial tão evidente agora quanto nos anos 1970 em que se passa a história real em que se inspirou. Baseado no livro autobiográfico e homônimo do próprio investigador Ron Stallworth, Infiltrado na Klan (2018) resgata o caso deste que foi o primeiro policial negro da polícia de Colorado Springs e que, com a ajuda de um companheiro de departamento, adentra e se torna membro da Ku Klux Klan, organização norte-americana que prega a supremacia branca, para ter conhecimento de suas ações. Citando o importante em linguagem e técnica, porém, controverso para dizer o mínimo em seus preconceitos, O Nascimento de uma Nação (1915), e contrapondo com os títulos e até utilizando o estilo da Blaxploitation, especialmente na sequência final, o diretor traça um panorama com duras críticas ao racismo nos Estados Unidos, fatores que levaram a produção a receber o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes deste ano.
Sua direção já começa a imprimir uma marca quando John David Washington – sim, ele é filho de Denzel – na pele do protagonista, já aprendendo a arte de se infiltrar, tem contato com os discursos de um ex-Pantera Negra (Corey Hawkins) e a jovem ativista Patrice (Laura Harrier) em um encontro de jovens universitários afro-americanos, cujos rostos de descoberta de sua própria beleza, força e resistência são destacados sob um fundo preto. Mas a assinatura de Lee, deixada lá em seu filme-chave Faça a Coisa Certa / Do the Right Thing (1989), com os planos holandeses, aqueles tortos em diagonal, surgem a partir do segundo ato, quando a situação fica mais tensa e crítica na investigação dele e do judeu Flip Zimmerman (Adam Driver), que encarna o “Ron Stallworth branco”, criado pelo original em ligações ao chefe regional da Ku Klux Klan (Ryan Eggold) e inclusive ao grão-mestre da KKK David Duke (Topher Grace). Tal qual sua obra-prima, utiliza o tom cômico para falar de racismo, seguindo o caminho da ridicularização – sem a redenção presente em Três Anúncios Para um Crime (2017), por exemplo – em vez de uma vilanização melodramática dos membros da organização; uma opção que quebra barreiras para atingir o seu objetivo, mas que em tempos de falta de interpretação e exercício de escuta ao diálogo, gere certa rejeição e falta de identificação do espectador que compartilha das mesmas ideias dos inimigos da tela.
O roteiro escrito pelo cineasta ao lado de Charlie Wachtel, David Rabinowitz e Kevin Willmott é inteligente nas menções (in)diretas a Donald Trump, como o uso do slogan “America First” e a fala sobre um plano de colocar alguém da organização na Casa Branca, mas recaí em alguns momentos, junto com a direção, em um didatismo que retira certo impacto desse equilíbrio de denúncia satírica da narrativa, a exemplo da montagem que precisa “desenhar” para o espectador o discurso já claro do longa ao intercalar a cerimônia do grupo supremacista branco e o relato de um senhor sobre racismo na reunião dos estudantes negros. A mão pesada naquele trecho era desnecessária já que Lee endereça o seu recado de maneira mais pungente ao final, jogando na cara da plateia – que na sessão para a imprensa (novidade, só que não!), era quase em sua totalidade branca – a realidade contemporânea com as imagens das manifestações dos supremacistas e ataque aos que se opunham a ela na cidade de Charlottesville, na Virgínia, em agosto do ano passado, mostrando o David Duke da vida real e as falas condescendentes de Trump a eles. O paralelo com o cenário brasileiro atual é inevitável, ainda mais agora com a própria KKK opinando até sobre um dos nossos candidatos à presidência.
> Espaço Itaú Augusta 1 – 29/10/2018 às 14h00