MOSTRA SP 2018 | Dia 11– Canções e imagens de amor e de dor
Atualizado: 17 de fev. de 2021
Relações amorosas são feitas de momento de cumplicidade e de dor no romance nacional Todas as Canções de Amor e de uma repressão sistêmica no drama vietnamita A Terceira Esposa, ambos destaques deste 11º dia de Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, junto com outros filmes da programação deste domingo da reta final desta 42ª edição.
(Todas as Canções de Amor, 2018)
O início, o fim e o meio. Como tudo na vida, histórias de amor passam por estes estágios, mas o cinema, ou a ficção em geral, tem uma predileção pelo começo de romances. Os meios são coadjuvantes. E quando o término é o foco, sempre vem com uma carga dramática longe da delicadeza com que são tratados os princípios. O charme do filme nacional Todas as Canções de Amor (2018) é exatamente unir esses extremos, com Marina Ruy Barbosa e Bruno Gagliasso na pele de recém-casados que tem suas vidas ligadas a de Luiza Mariani e Julio Andrade como o casal colocando um ponto final na sua relação, através de um K7 caseiro que tem o mesmo título da produção.
A diretora Joana Mariani, porém, não faz de seu primeiro longa de ficção apenas um “romance fofo” e sim uma obra universal sobre relacionamentos. Ao lado do bom roteiro de Nina Crintzs, Vera Egito e Roberto Vitorino, com colaboração de Juliana Araripe, e da montagem de Leticia Giffoni, sua direção interliga a trajetória dos dois pares, Clarice (Luiza Mariani) e Daniel (Andrade) que moraram antes naquele apartamento, nos anos 1990, no momento que antecede a entrada do Plano Real, e Ana (Ruy Barbosa) e Chico (Gagliasso) que chegam para viver no mesmo imóvel nos dias atuais. E faz isso através dos caminhos contrários e semelhantes que ambos traçam em suas histórias de amor, acentuados ainda mais pelo fato de Ana ser uma escritora que decide usar a fita em que Clarice gravou as músicas que queria dedicar ao seu futuro ex como inspiração para um novo livro – e, talvez, até para o que o público vê na tela, que pode ser fruto da imaginação da jovem autora.
O cenário do apartamento, aliás, domina quase todo o longa, com a trama tendo saídas bem pontuais deste ambiente, e se transforma em um personagem do filme, tal qual a mixtape “Todas as Canções de Amor” e a própria trilha sonora que ela traz de maneira diegética para os paralelos estabelecidos nas sequências com os dois casais. A produção musical assinada por Maria Gadú vai de Barão Vermelho e Blitz a Cartola e Gal Costa, pontuando muito bem os percalços de uma relação amorosa. Há ainda a participação especial de Gilberto Gil cantando Drão sob um novo arranjo e uma ótima versão de I Will Survive de IZA e Liniker, embora um pouco deslocada da seleção e do clima da obra até então.
Mariani fez uma bela estreia com o documentário Marias (2015), que destacava a fé nas figuras femininas das padroeiras de países latino-americanos, que rendeu o derivado A Imagem da Tolerância (2017). Aqui, revela mais uma vez o seu apreço por planos detalhes e flares na sua linguagem estética e por desvendar universos íntimos, especialmente das mulheres, em seu conteúdo. Por isso, ainda que cada espectador possa criar mais ou menos empatia pelos personagens desse quarteto multitemporal, há pontos da narrativa em que a identificação é tão espontânea que é difícil não se emocionar com o destino deles – ou com o próprio que deve vir à mente.
> Espaço Itaú Frei Caneca 3 – 28/10/2018 às 13h30
(Leto, 2018)
É com um plano-sequência da steady cam vindo dos bastidores para uma comportada plateia de um show de rock que se inicia o russo Verão (2018), filme de Kirill Serebrennikov que causou boa impressão em Cannes neste ano, embora o diretor de O Estudante (2016) não estivesse presente no festival por estar em prisão domiciliar na Rússia. Acusado de desvio de recursos, o realizador alega que tudo se trata de repressão ao seu discurso artístico. Não por menos, a sequência inicial já apresenta em ação o aparelho da censura do regime soviético naquela Leningrado do início dos anos 1980 que servem de cenário para o seu novo longa.
O objeto em questão é o início da carreira de Viktor Tsoi (1962-1990), que a frente da sua banda Kino, é considerado um pioneiro do rock russo. No entanto, Serebrennikov não está interessado em uma mera cinebiografia, mas sim em adotar algumas liberdades ficcionais e estéticas que captem o espírito do artista e de seus contemporâneos que, apesar da restrição governamental e de mal conseguirem viver de música, traziam o gênero musical dos "inimigos imperialistas" para uma a União Soviética. Para tanto, ele estabelece a trama como um triângulo amoroso, quando o jovem, interpretado por Teo Yoo, e seu colega de dupla conhecem o conhecido cantor de rock e blues Mayk Naumenko (Roman Bilyk), da banda Zoopark, e a esposa dele, Natasha (Irina Starshenbaum): como é previsível, ela se interessa pelo novato, mas, como não é comum em histórias assim, ele não poda o interesse da mulher, com quem vive em quartinho junto com o filho ainda bebê.
Verão, porém, é verborrágico esteticamente, de uma maneira totalmente condizente com o punk – e no caso de Viktor, também a New Wave que o influenciou – que aqueles jovens ouviam e se inspiravam. O preto e branco da bela fotografia de Vladislav Opelyants, é interrompido pela cor em momentos pontuais, com as filmagens em Super 8 num estilo documental ou em delírios. Do mesmo jeito, a "narrativa convencional" é rompida pelos momentos musicais, não os das apresentações deles em shows ou para os amigos, mas sequências como a do trem, com os personagens se rebelando contra a repressão ao som de Psicho Killer do Talking Heads e grafismos estilizados na tela, até certo personagem cético vir dizer que "isto não é verdade". Praticamente uma figura de um DJ/VJ, ele vai apresentando as músicas destes números irreais, que trazem clássicos do rock mundial, como The Passenger do Iggy Pop e All the Young Dudes da banda Matt The Hoople, além de Lou Reed, que é muito citado junto de Beatles, Blondie, Sex Pistols, T. Rex, Duran Duran, etc. Mas entre elas, porém, há as canções de Tsoi e Naumenko, introduzindo o público a todo um rock russo a ser descoberto.
> Reserva Cultural 1 – 28/10/2018 às 19h20
(Nguoi Vo Ba, 2018)
Pouco conhecido até para os cinéfilos nível hard, é do cinema vietnamita que vem uma das produções mais belas desta Mostra, tanto visualmente quanto em sua mensagem. Relembrando aquela beleza oriental paciente que o público se acostumou a ver em filmes de época japoneses, chineses e sul-coreanos, por exemplo, A Terceira Esposa (2018) estreou mundialmente no Festival de Toronto, onde levou o Prêmio NETPAC, dedicado ao cinema asiático. No entanto, ao apresentar um excerto do cotidiano das mulheres no Vietnã do fim do século XIX, a diretora Ash Mayfair constrói um manifesto contemporâneo da força feminina resistindo a uma repressão que perdura há milênios não só naquele ponto do globo terrestre.
Inspirada nas mulheres da sua família, especialmente sua avó, como disse em entrevista ao NERVOS, a jovem cineasta conta a história de May (Nguyen Phuong Tra My) que, aos 14 anos, se torna a terceira esposa de um rico proprietário de terras no interior do país. O filme, então acompanha a dinâmica de disputa amistosa entre as três esposas que desejam dar um herdeiro homem ao marido, além de suas filhas e outras mulheres presentes na casa, revelando aos poucos que a questão é mais profunda. Não se trata apenas de visar o poder dentro dessa estrutura familiar, mas de evitar que o mesmo destino delas se repita.
A poligamia institucionalizada e o machismo embutido naquele sistema não prejudicam apenas as mulheres, como também é tóxico aos homens, frisa Mayfair tanto no filme quanto em suas declarações. A direção de arte e figurino impecáveis ao lado da fotografia de Chananun Chotrungroj emulando pinturas contribuem para o filme se mostrar tão sensorial e sensual. No entanto, a contemplação do público se torna aflitiva a partir do momento que o seu recado vai se tornando cada vez mais pungente no crescer da narrativa e desemboca em um potente desfecho.
> Espaço Itaú Augusta 1 – 28/10/2018 às 21h30
> Cine Caixa Belas Artes – Sala 1 Villa Lobos – 30/10/2018 às 17h30
(Sofia, 2018)
A repressão às mulheres nos países em que as leis do islamismo se confundem com as leis nacionais já é conhecida – e não quer dizer que não exista em outros lugares influenciados ou não por outras religiões –, mas a Mostra é aquela oportunidade anual de ver o cinema destes locais escancarando isso como um lembrete. Do Marrocos, vem o retrato de uma jovem de 20 anos, interpretada por Maha Alemi, que, em uma refeição em família e para discutir negócios do pai, descobre que está grávida e seu filho já vai nascer. Este é só o início de Sofia (2018), primeiro longa-metragem da cineasta Meryem Benm`Barek, que recebeu o prêmio de Melhor Roteiro na seção Um Certo Olhar (Un Certain Regard) no Festival de Cannes.
A presença da prima e médica Lena (Sarah Perles) é primordial para a garota que, por questões psicológicas, acabou tendo o que se chama de “negação da gravidez”. Com a câmera na mão e um estilo naturalista especialmente neste tenso início, o filme acompanha as duas indo para o hospital e depois, por causa da lei marroquina que obriga a dar a documentação do pai da criança em 24 horas para seu registro para não responderem criminalmente, atrás de Omar (Hamza Khafif), o nome do rapaz que Sofia dá o nome depois de muito esforço. Outros vários desdobramentos se desenvolvem na trama a partir disso, mas isso nem é o melhor do roteiro premiado de Meryem, embora haja o mérito de manter essa narrativa sempre instigante.
A chave do texto está na complexidade dos personagens, em suas qualidades e defeitos neste painel construído de uma sociedade machista e com diferenças sociais profundas, desde a família classe média de Sofia à tia rica Leila (Lubna Azabal) e à classe trabalhadora representada pelo clã de Omar. O abismo é materializado na tela, por exemplo, na cena do carro emparelhado ao ônibus. Mas também destilado nas atitudes de cada um, como a da libertária Lena, que apesar de todo um ingênuo progressismo imprimidos bem por Perles ao lado do desespero de Alemi na pele da protagonista, não pensa em nada disso antes de ter o pensamento conservador de sua classe privilegiada de que dinheiro resolve tudo.
> Espaço Itaú Frei Caneca 1 – 28/10/2018 às 22h00
> Cine Caixa Belas Artes – Sala 1 Villa Lobos – 30/10/2018 às 19h45
(Fugue, 2018)
A cineasta polonesa Agnieszka Smoczynska provocou as reações mais diversas com o seu primeiro longa A Atração (2015), um musical de sereias assassinas que esteve, inclusive, na 40ª Mostra. A cena de abertura de seu segundo filme, Fuga (2018), até recorda a estranheza de sua estreia, com uma mulher caminhando quase como um zumbi pelos trilhos do metrô e chocando os presentes na estação com o ato que toma ali. No entanto, o que vem a seguir é uma narrativa dita convencional na qual a diretora está mais preocupada em explorar a estranheza presente na aparente familiaridade dos relacionamentos familiares ou conjugais – como diz a música de Michelle Gurevich na trilha sonora, Lovers Are Strangers.
Para tanto, a realizadora e Gabriela Muskała, que roteiriza e protagoniza o filme, usam como representação a fuga dissociativa, uma espécie de amnésia de fundo psicológico, geralmente causada por algum stress pós-traumático, que faz a pessoa perder a memória sobre tudo aquilo que envolva a sua identidade, mas não necessariamente o conhecimento prático e básico adquirido previamente. Após aquele prólogo, passam-se dois anos e aquela mulher, já diferente no corte de cabelo e se identificando como Alicja, é objeto de estudo de psicólogos e psiquiatras que a encontraram nas ruas de Varsóvia. Porém, ao divulgarem seu caso na televisão, ela descobre sua identidade: Kinga, filha, esposa e mãe.
Poderia ser um drama ou um thriller como tantos outros que utilizam a amnésia como premissa para um melodrama ou suspense já conhecido. No entanto, Smoczynska percorre esses caminhos de modo reflexivo acerca desta mulher que abandonou os seus papéis de uma vida no ápice de sua infelicidade, sem buscar as mesmas saídas e com um controle narrativo muito consciente. O longa exibido na Semana da Crítica no Festival de Cannes possui, por exemplo, um desenho de som proposto a acentuar a confusão da mente da protagonista, enquanto ela começa a recordar algumas coisas de sua identidade anterior no meio das incertezas do que vive atualmente convivendo com o marido e o filho.
Menos ousado que seu début, mas com uma direção mais segura e precisa, Fuga apresenta a habilidade variada de Agnieszka e oferece a bagagem necessária para a cineasta ir a qualquer lugar ou voltar a experimentação de sua estreia com mais experiência para limar os excessos. De um jeito ou de outro, o público pode contar com a surpresa e a certeza de uma forte história feminina.
> Cinemateca – Sala BNDES – 28/10/2018 às 18h10
(Pin Cushion, 2017)
Filmando na própria cidade natal e colocando sentimentos autobiográficos em seu primeiro longa, a inglesa Deborah Haywood transforma esses aspectos pessoais em questões universais na sua estreia. Tendo como ponto de partida a mudança de uma mãe e sua filha para uma nova cidade, Almofada de Alfinetes (2017) se estabelece praticamente como um conto moral de duas verdades ambivalentes. Enquanto apresenta a relação de dependência até tóxica de Lyn (Joanna Scanlan) com sua cria Iona (Lily Newmark), também observa o mundo particular da adolescente que convivia harmoniosamente com sua figura materna e seu imaginário infantil desabando frente a uma sociedade que as corrompe.
Para isso, a produção britânica estabelece uma estilização e narrativa oníricas que recordam o australiano O Sonho de Greta (2015), ao mesmo tempo em que se diferenciam dele. De um lado, estão as sequências de alucinação que, no caso de Iona, revelam suas projeções de ser bem aceita pelas novas colegas, trocando a figura de sua mãe corcunda com suas roupas de tricô pela figura loira de uma mãe comissária de bordo. De outro, estão as caracterizações retrô na direção de arte e figurinos, que aqui se encontram em um contexto moderno diferente da ambientação realmente setentista do longa de Rosemary Myers.
O aspecto contemporâneo está estampado no celular que se transforma em ferramenta perversa do velho / novo bullying. Representado através da forma alegórica com que a obra se apresenta, ele vai minando até o tom do filme quando as crueldades e consequências dele se tornam cada vez mais reais, ao ponto de quase perder a mão. Ainda que a direção de Haywood não encontre uma coesão em sua efervescência tão adolescente quanto a de sua protagonista, é capaz de traçar um retrato peculiar da perda da inocência em seu coming of age.
Mais interessante ainda é como, por trás do arquétipo do trio de meninas populares e metidas da sala, utilizados a exaustão em filmes similares – do australiano citado ao já cult Meninas Malvadas (2004), passando até pelo brasileiro recente Tudo Por um Pop Star (2018) –, a cineasta lhes acrescenta camadas e aponta que, pelo menos, duas delas não estão confortáveis neste papel. Chelsea (Bethany Antonia) demonstra pelos olhares que apenas adotou a estratégia de humilhar para não ser humilhada, mas que sente a cobrança por isso, enquanto a queen bee Keeley (Sacha Cordy-Nice) confessa que gostaria de ir para um novo lugar e ser outra pessoa. É a afirmação que exterioriza o discurso central de Almofada de Alfinetes sobre as identidades que assumimos no decorrer da vida em cada comunidade que adentramos: família, escola, amigos, trabalho, namorado(a) e por aí vai na difícil tarefa de socializar.
> Reserva Cultural – Sala 1 – 28/10/2018 às 15h40
(El Creador de Universos, 2017)
Primeiro filme que a uruguaia Mercedes Dominioni realiza, El Criador de Universos (2017) é um documentário familiar na tela e por trás dela, embora não fique certo qual o grau de parentesco da jovem cineasta que tem o mesmo sobrenome dos personagens em destaque. São eles o jovem Juan, de 16 anos e com Síndrome de Asperger – embora este diagnóstico esteja na sinopse e não declarado no longa – e sua vó Rosa, de 96 anos, com quem grava os filmes e telenovelas que cria. Esses universos que o adolescente com medo de virar adulto imagina, dirige e dá vida têm tramas folhetinescas, com as vinganças e vilanias que ele assiste na TV, e apesar de todo amadorismo, carrega algumas noções básicas de narrativa e, no subconsciente, a relação que extrema necessidade é, às vezes, repulsa, que estabelece com a avó.
Além dessa metalinguagem do dispositivo do documentário em acompanhar prioritariamente essas filmagens, a produção retrata o cotidiano de alguém com Asperger e a velhice. Em sua maneira meio obsessiva, típica do espectro autista do qual a síndrome faz parte, Juan não enxerga o cansaço da avó. Sabiamente, em certo ponto do longa, Mercedes muda o foco de sua atenção, literal e figurativamente, com o protagonismo saindo do jovem para ir à Rosa, cujo talento e carisma é evidente já na pequena câmera do neto, mas apenas a lente da diretora transparece o peso da morte que aquela senhora está sentindo cair sobre ela.
> PlayArte Marabá – Sala 4 – 28/10/2018 às 13h00
(Lean on Pete, 2017)
Há uma América diferente, aquela que não quer ser vista pelos próprios norte-americanos e que é destacada pelo olhar estrangeiro do britânico Andrew Haigh em A Rota Selvagem (2017). Presente na seleção do Festival de Toronto do ano passado, o longa mais recente do diretor de 45 Anos (2015) aproxima o seu foco dos Charleys que coexistem ao redor deles – e de nós também – e não se dá conta. O garoto do filme é vivido por Charlie Plummer – que não é parente do Christopher Plummer –, cujo tour de force que internaliza com naturalismo no protagonista é a principal qualidade e atrativo da produção.
Adaptando o romance Leon on Pete (2010) de Willy Vlautin, Haigh gasta um bom tempo contextualizando a relação de Charley com o pai (Travis Fimmel) e com o cavalo Leon on Pete, que conhece ao começar a trabalhar com Del (Steve Buscemi) que treina cavalos de corrida. Várias desventuras na primeira metade da história farão o adolescente de apenas 15 anos partir de Portland para o estado de Wyoming em busca de sua tia (Alison Elliott), com que estabeleceu algum vínculo materno durante a sua infância. O que não quer dizer que outras não ocorrem na segunda parte, quando o que parece ser um tradicional drama de cavalos se torna também um road movie e a narrativa já sofre com a longa duração do que seria um filme por si só em sua primeira hora.
A obra possui igualmente toques de um faroeste desolador, com as paisagens descampadas belamente fotografadas por Magnus Nordenhof Jønck, e especialmente um coming of age. A transformação para uma vida adulta aqui vem de maneira precoce e através do sofrimento, que vão aos poucos recrudescendo o garoto, enquanto ele luta pela sobrevivência e daqueles que ama em quase um conto de amadurecimento. No entanto, sem sempre conseguir salvá-los ou a si próprio de um mundo egoísta e mau, acumula perdas que fazem alguns espectadores se questionarem se o cineasta apenas chega perto ou ultrapassa o limite da exploração da miséria.
> Espaço Itaú Frei Caneca 2 – 28/10/2018 às 18h50
> Reserva Cultural – Sala 1 – 29/10/2018 às 21h00
> Espaço Itaú Frei Caneca 1 – 31/10/2018 às 19h30
(Voina Anny, 2018)
Tela preta, com barulhos de tiros e vozes em alemão. Quando a imagem surge, revela partes de corpos na lama, até que um braço começa a se mexer e dele aparece uma pequena menina de apenas seis anos. Este é o impactante cartão de visitas de A Guerra de Anna (2018), apresentado logo na abertura do novo filme do russo Aleksey Fedorchenko, de longas já exibidos na Mostra, como Os Primeiros na Lua (2005), A Estrada de Ferro (2007) e Almas Silenciosas (2010).
Exibido no Festival de Roterdã, seu novo trabalho segue a trilha de outros de observar a guerra, especialmente a II Guerra Mundial, pelo olhar de uma criança. Artifício visto desde o sucesso A Menina que Roubava Livros (2013) ao clássico A Infância de Ivan (1962), début do mestre compatriota Andrei Tarkovski, aqui ele adquire um prisma ainda específico e minimalista quando a menina judia praticamente não tem contato com outros humanos em mais de 70 minutos de filme. Cabe à novata Marta Kozlova, que encarna a protagonista solitária, cativar e prender a atenção e o fôlego do público enquanto a sua Anna acaba se refugiando justamente na chaminé de um quartel nazista montado em uma escola durante a ocupação alemã na então União Soviética.
Dá agonia vê-la tomando água suja e sobras de comida no decorrer da história, que se restringe a uma narrativa episódica dos passos dados ou não pela garota naquela situação extrema. Se a trama pode ser pequena demais para um longa, o roteiro de Fedorchenko e Nataliya Meshchaninova funciona como um conto moral sobre sobrevivência no isolamento que a guerra provoca a cada indivíduo, e o quanto isso os aproxima ou afasta do que nos torna humanos ou do que temos de animalesco. E, por fim, fica a questão: até quando sobreviver vale a pena?
> Espaço Itaú Augusta 1 – 28/10/2018 às 19h45
(Waldheims Walzer, 2018)
O documentário austríaco A Valsa de Weldheim (2018) é um dos vários títulos desta 42ª Mostra que mostram como a História é cíclica e, mesmo assim, o quanto não aprendemos com ela. A cineasta Ruth Beckermann apresenta isso ao resgatar a figura emblemática da Áustria, Kurt Weldheim. De Ministro das Relações Exteriores se tornou secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em dois mandatos de 1972 a 1981, e depois se candidatou à Presidência do país em 1986, justamente quando o seu passado na SS nazista ressurge, como figura atuante no despacho de partisans iugoslavos, movimento de resistência à ocupação do Eixo, especialmente alemães e italianos, na região da antiga Iugoslávia.
A diretora judia traça essa linha do tempo da biografia autorizada e da não-autorizada do estadista a partir de material de arquivo das décadas de 1970 e 1980, além de registros feitos por ela enquanto fazia parte do grupo que se manifestava contra a candidatura de Weldheim. E não é spoiler e sim História, dizer que ainda com a forte campanha internacional, ele foi eleito mesmo assim.
O filme disserta sobre a negação da culpa, seja a do próprio Weldheim que é mais responsabilizado por ter omitido seu trabalho no sistema de expansão do 3º Reich e não fazer nem ao menos um mea culpa sobre o nazismo do que por qualquer morte, ou de uma nação que sempre assumiu o papel de vítima da ocupação alemã e nunca fez uma desculpa formal por sua participação nos planos de Hitler, que afinal de contas, era austríaco. Por isso, é até louvável que a Áustria tenha escolhido a produção para representar o país em uma provável indicação no Oscar. Por mais que o documentário seja formal em sua estrutura e estética, se faz urgente pelo seu tema, com um crescimento da extrema direita não só na Europa, mas também na América, como bem sabemos.
> Cinesala – 28/10/2018 às 19h40
(Boening, 2018)
O título do novo filme de Lee Chang-Dong pode sugerir algo explosivo, mas a verdade é que Em Chamas (2018) só chega a este ponto depois de uma paciente fervura em uma narrativa cuja ebulição vem gradualmente. A maneira como o cineasta sul-coreano conduz isso ao adaptar o conto Queimar Celeiros (1993), do escritor japonês Haruki Murakami, chamou a atenção dos críticos internacionais no Festival de Cannes, que lhe deram o prêmio FIPRESCI. Por tabela, lhe garantiu sua escolha como o candidato da Coreia do Sul na disputa por uma vaga no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
O thriller começa com o reencontro do entregador e aspirante a escritor Jongsu (Yoo Ah-In) e com a promotora de promoções de outra loja Haemi (Jun Jong-Seo). Os dois cresceram na mesma região e passam a se encontrar outras vezes, até que ela faz a sua tão sonhada viagem para a África e, na volta, traz na bagagem o bem-sucedido Ben (Steven Yeun). A tensão sexual e os ciúmes vão crescendo entre o trio, com um desaparecimento elevando isso ainda mais na segunda metade de suas duas horas e meia de duração.
Este crescente é pontuado pela trilha sonora de Mowg que inclui através de instrumentos típicos uma sonoridade oriental no suspense de suas composições. Vários elementos instigam leituras no decorrer da trama, a exemplo do gato imaginário, mas o que ganha mais destaque é o uso do sol para graduar esse “aquecimento narrativo” assim como a leitura das diferenças de classe na sociedade sul-coreana. Para coroar, o clímax arrebatador ainda entra no hall daqueles finais que se pode duvidar se ocorreu na realidade ou é fruto da imaginação do protagonista.
> Espaço Itaú Frei Caneca 1 – 28/10/2018 às 17h20
> Espaço Itaú Pompeia 1 – 29/10/2018 às 21h00
> Cinearte Petrobras 1 – 31/10/2018 às 14h00
(Familia Sumergida, 2018)
A concepção mais interessante que a atriz argentina María Alche faz em seu primeiro longa como diretora é a sua demarcação bem clara de dois tipos de família: aquela que a pessoa conhece desde o nascimento, com pais, irmãos ou afins, e lhe serve de suporte para a vida; e aquela que o indivíduo forma no decorrer de sua história, cabendo a ele ou ela suportar os seus membros. É quando perde a irmã, que era quem lhe restava de sua família pregressa, que a protagonista vivida por Mercedes Morán entra em crise com o seu papel de esteio de sua outra família, na qual é esposa e mãe de três filhos. Este é o norte de Família Submersa (2018), coprodução entre Argentina, Brasil e Alemanha que ganhou o Prêmio Horizonte no último Festival de San Sebastián.
Sem ter um momento direito para sentir o luto pela perda da irmã, Marcela precisa lidar com os problemas de seus filhos, já que o marido está viajando. A mais velha terminou com o namorado, a do meio está pensando em sair de casa e o caçula precisa estudar, pois está de recuperação, obrigando todos a passarem o verão ali mesmo e terem férias reduzidas. Neste ínterim, ela acaba se aproximando de Nacho (Esteban Bigliardi), um amigo de sua filha que acaba lhe servindo de colete salva-vidas neste momento em que procura encontrar sua própria identidade nesta vida que lhe submerge.
A cineasta estreante que um dia foi A Menina Santa (2004) de Lucrecia Martel pega emprestado muito do olhar da compatriota reconhecida em seu retrato de relações familiares claustrofóbicas e o tom fantasmagórico que imprime nas visões de parentes mortos que se confundem com a realidade morta da protagonista. Contudo, Alche não consegue seguir em frente em nenhuma das diversas frentes que abre nesta história, passando a sensação de um filme incapaz de emergir dessas pretensões na hora necessária.
> Cinesala – 28/10/2018 às 14h00