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Foto do escritorNayara Reynaud

UMA CASA À BEIRA-MAR | O tempo e a maresia

Atualizado: 18 de out. de 2020


Jean-Pierre Darroussin, Ariane Ascaride e Gérard Meylan em cena do filme francês Uma Casa à Beira-Mar (2017), de Robert Guédiguian | Foto: Divulgação (Imovision)

O desgaste da maresia pode ser abrasador para os imóveis, carros e objetos em cidades litorâneas, como qualquer pessoa que tenha, ao menos, passado férias na praia pode perceber. Em Uma Casa à Beira-Mar (2017), são as relações que se encontram enferrujadas, mais pela ação do tempo mesmo, no drama familiar que Robert Guédiguian traz em seu último filme. O infarto do patriarca é o mote para a clássica trama de retorno à vila natal e ao seio da família, porém, tudo ganha novas camadas na mão do cineasta francês.

Quando Maurice (Fred Ulysse) sofre o ataque cardíaco em sua bela varanda, logo na primeira cena do longa, deixando-o paralisado e incomunicável, reaparecem velhos rostos conhecidos do público que acompanha a filmografia de Guédiguian. Em destaque, Ariane Ascaride, musa e esposa do diretor, é a filha Angèle que, após 20 anos afastada, tendo uma carreira bem sucedida de atriz em Paris, retorna à vila localizada ao norte de Marselha. E também Gérard Meylan como Armand, o irmão que permaneceu com o pai, cuidando de seu modesto restaurante, e Jean-Pierre Darroussin na pele de Joseph, outro partiu e agora volta com a jovem noiva Bérangère (Anaïs Demoustier, também recorrente nos últimos trabalhos de Robert).

O reencontro dos três irmãos, cuja familiaridade do elenco torna essas relações mais reais, faz o passado vir à tona, seja subentendido nas entrelinhas do roteiro do cineasta e de seu parceiro de escrita, Serge Valletti, ou escancarado nas confissões dos personagens e flashbacks traumáticos ou nostálgicos. Um deles, porém, não foi filmado agora para a produção, mas se trata de um trecho de um longa do próprio diretor, Ki lo sa? (1986), com Ascaride, Darroussin e Meylan ao lado do ator Pierre Banderet como jovens dirigindo ao som de I Want You, de Bob Dylan, rumo ao mesmo cenário à beira-mar. A cena, que se encaixa perfeitamente à narrativa, trabalha este diálogo entre passado, presente e, por vezes, futuro que não está apenas na trama, mas na observação de Guédiguian sobre seu próprio cinema enquanto arte e ferramenta política.

Declaradamente de Esquerda, seja na vida pessoal com a militância partidária de décadas passadas ou nas histórias que leva às telas, o cineasta francês cada vez mais tem se debruçado sobre a complexidade de manter e viver conforme o pensamento da Esquerda, especialmente o de sua geração, na atualidade – e, diametralmente, também seguir passo a passo a cartilha da Direita, como revela uma fala e certas ações dos personagens mais jovens e liberais, pois os desejos e relações humanas tornam a política do dia-a-dia ainda mais complexa. A utopia comunista antiga, materializada naquela vila construída pelos sonhadores Maurice e seu vizinho Martin (Jacques Boudet, outro habitué), está em decadência na imagem do lugar vazio, onde só restam, além da família principal, o jovem pescador e apaixonado Benjamim (Robinson Stévenin) e o casal Martin e Suzanne (Geneviève Mnich), que rejeitam a ajuda do filho Yvan (Yann Trégouët) para pagar o aluguel. A decepção está igualmente na figura de Joseph, como um ex-sindicalista que se acomodou na posição de executivo até ser demitido e ficar depressivo.

Esse questionamento sobre os rumos da Esquerda, já trabalhado em um dos seus sucessos mais recentes, As Neves do Kilimandjaro (2011), ganha tons maiores de autocrítica, embora ainda guarde resquícios de autoindulgência. Uma Casa à Beira-Mar ganhou alguns prêmios paralelos ao estrear no Festival de Veneza no ano passado por vislumbrar os desafios do futuro na questão da imigração, seja na figura do militar negro (Diouc Koma), provavelmente um filho ou um próprio imigrante das ex-colônias francesas na África, que comanda a caça pelos refugiados vindos num bote que chegou à região, ou das crianças encontradas pelos habitantes sobreviventes da vila. No entanto, ao introduzir os pequenos personagens apenas no terceiro ato, Guédiguian sujeita os três irmãos, uma menina (Haylana Bechir) e dois meninos inseparáveis (Ayoub Oaued e Giani Roux), como ferramenta narrativa em função da família principal, para que Angèle, Joseph e Armand se reconectem com suas questões mal resolvidas e o grito dos “novos” ao final possa despertar um velho pensamento paralisado. A sensação que o tema é subaproveitado está presente desde que o novo trio adentra a trama, porém, é ao mesmo tempo aquilo que dá fôlego a ela e um discurso humano, acima de tudo, à obra.

 

Uma Casa à Beira-Mar (La Villa, 2017)

Duração: 107 min | Classificação: 12 anos

Direção: Robert Guédiguian

Roteiro: Robert Guédiguian e Serge Valletti

Elenco: Ariane Ascaride, Jean-Pierre Darroussin, Gérard Meylan, Jacques Boudet, Anaïs Demoustier, Robinson Stévenin, Yann Trégouët, Geneviève Mnich, Fred Ulysse, Diouc Koma, Haylana Bechir, Ayoub Oaued e Giani Roux (veja + no IMDb)

Distribuição: Imovision

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