Cine PE 2018 | A voz à frente da forma?
Atualizado: 1 de mai. de 2021
A diversidade de títulos, ideias e autores era algo prometido desde o discurso de abertura da 22ª edição do Cine PE – Festival do Audiovisual. No discurso, Graça Araújo – que apresenta o Cine PE desde sua primeira edição – já anunciava que teríamos de obras “intimistas” e “cabeças”, a obras “mais caretas” e “coxinhas”. Após uma 21ª edição de polêmicas e boicotes contra um suposto unilateralismo de direita, esta edição abriu e se fechou aos gritos de “Fora Temer” dentro e fora das telas. A pluralidade que mais surpreendeu, no entanto, foi a artística.
Se muitos questionaram o bom senso da curadoria da 21ª edição por selecionarem obras como O Caso Dionísio Díaz (2016), um documentário precário e amador que não tinha realmente muito a dizer, a curadoria deste ano – reformulada, com vozes novas – merece aplausos por motivos parecidos: ao selecionar obras como o curta pernambucano Cara de Rato, igualmente olhado com desconfiança e um certo preconceito em relação ao seu esmero cinematográfico por muitos, o Cine PE 2018 permitiu que vozes novas e apaixonadas pudessem contar sua história da forma que fosse. Como no texto sobre o encontro do cinema brasileiro com as HQS nos destaques do festival, que tal olhar desta vez para obras de destaque similar neste Cine PE, premiadas e não premiadas, que escancaram o bizarro, o ridículo, o estranho – e também o revoltante –; que transcendem muitas vezes a própria linguagem cinematográfica, onde a mensagem acaba sendo maior que a forma?
Começando pelo já citado Cara de Rato, eleito quase que universalmente o pior filme do festival, o filme gira em torno de Veridiana, uma garota que nasceu com uma terrível deformidade no rosto, atribuindo a ela características faciais que se assemelham à de um rato, como o título sugere. Com uma narrativa pedestre que parece compreender apenas o básico da linguagem do cinema, o filme possui péssimos valores de produção, atuações fracas e um amadorismo geral que paira sobre toda a obra. No entanto, é sentida uma honestidade quase infantil no comprometimento com o material visto em tela por parte de seus realizadores, que não possuem senso do ridículo ou elevadas pretensões intelectuais e filmam esta obra como se fosse a história mais importante de todas.
O que se vê aqui, então, é uma história contada através de cenas que parecem saídas de produções mais refinadas, das quais não conseguimos nos lembrar exatamente, mas que foram processadas com um amor primal ao cinema pela mente de seu diretor Benedito Serafim, regurgitando-as aqui. Se a maioria dos diretores almejariam um trash intencional com este material, Cara de Rato alcança o cinema trash autêntico, feito sem ironias, sem concessões, e apenas pelo amor a sétima arte. É também o curta visto aqui mais propenso a uma adoração cult uma vez que for liberada de vez para o mundo, a la The Room (2003).
A importância de um filme como este no Cine PE, no entanto, é maior que qualquer deslumbre pelo bizarro. Em sua apresentação para o público, a equipe deste filme era uma das mais empolgadas, gratas e incrédulas por estar no palco do Cine São Luis, com gritos e lágrimas, não por almejar prêmios ou glória, mas apenas pela oportunidade cedida para que mostrassem sua voz. E este é um dos maiores trunfos que esta edição poderia ter alcançado. No entanto, a estranha caminhada de Cara de Rato neste festival não havia acabado: Roberta Mharciana, que vive a protagonista Veridiana, levou o troféu de Melhor Atriz pela Mostra Competitiva de Curtas-Metragens Pernambucanos por falta de concorrência, já que os outros curtas não possuíam atrizes no papel principal. Sensacional.
Outro premiado de destaque nessa narrativa de inusitados foi o documentário Uma Balada Para Rocky Lane (2016), que levou os prêmios de Melhor Filme pela Mostra Competitiva de Curtas-Metragens Pernambucanos, o Prêmio CiaRio e o Prêmio Portomídia. Nele, acompanhamos uma figura maior que a vida: José Leite Duarte, morador da pequena cidade de Arcoverde, no sertão de Pernambuco, que adotou a identidade de Rocky Lane, um cowboy de ação dos anos 50. O curta se conecta até mesmo com Henfil (2017), o vencedor de melhor longa do festival – e também vencedor do prêmio CiaRio –, com uma figura central quase mitológica que liga diversas paixões, diversas linguagens, contagiando o resto da narrativa com suas respectivas personalidades. No caso do Rocky Lane, no entanto, estamos falando de uma figura de total anonimato para o resto do mundo, mas grandiosa para os habitantes de Arcoverde.
Além de potente como simples relato do amor de um homem pela sétima arte ao ponto de viver os filmes, reencenando-os constantemente para os moradores, o que comove nesta obra são os relatos dos moradores de Arcoverde, dos quais o diretor desta obra, Djalma Galindo, faz parte. Alternando entre a melancolia saudosista e o puro humor, Uma Balada Para Rocky Lane e seu protagonista transitam entre a história do Cinema Bandeirante de Arcoverde, desde sua ascensão, entre os anos 1950 e 70, até seu fechamento, no início dos anos 80. Lane – diretamente ligado a história deste cinema – era o encarregado de buscar as películas e pôsteres dos filmes de trem, e chegou a morar mais de 25 anos num quarto atrás das telas. Com o fechamento, veio a saudade inconsolável de seu protagonista, comprometido a viver o cinema através deste personagem até o fim de sua vida, em 2011. A filha de Lane, já adulta e com vergonha das atitudes do pai, que se vestia de cowboy o tempo inteiro, insistia para o pai “viver na realidade”. O relato que mais emociona, no entanto, é aquele que vem de um senhor – que na época era apenas um garoto – que relata o salto de Lane de um trem em movimento com as películas dos filmes em mãos, tentando emular o herói dos filmes de ação que sempre achou que era.
O diretor Djalma Galindo era uma dessas crianças, vindas do sertão de Pernambuco, que pôde subir ao palco do Cinema São Luis emocionado para contar a história de um velhinho apaixonado por cinema, que gostava de brincar de cowboy. Na segunda vez que subiu ao palco – desta vez para receber o prêmio de melhor filme –, Galindo não conteve as lágrimas. Pôde-se sentir aquele senhor se transmutar em sua versão moleque enquanto ele dizia, com sotaque, “esse prêmio é pro Róqui Lãne”.
No discurso que engole a própria forma mencionada no começo deste texto, o que vemos aqui é num tema mais revoltante. Fica evidente no curta documentário carioca Marias (2017), que recebeu menção honrosa do Cine PE 2018 “pela relevância do tema apresentado através de depoimentos reais, emocionantes e contundentes”, que este é um dos primeiros trabalhos da diretora Yasmim Dias no audiovisual, com uma edição problemática, trilha musical excessiva e recortes de jornais sensacionalistas utilizados em determinados momentos. No entanto, os depoimentos vistos aqui – de mulheres que sofreram relacionamentos abusivos, de forma física, emocional e mental – são de uma crueza nauseante que eclipsam qualquer problema técnico mais sério. A diretora também é, aqui, uma das figuras centrais dentro da obra. O motivo, no entanto, é causa de luto: sua mãe, que também sofreu num relacionamento abusivo, foi morta por seu ex-marido. O depoimento que vem da diretora contra um projetor, olhando para a câmera enquanto a imagem de sua mãe marca seu corpo, representa uma imagem que grita mais alto do que mil vozes.
Esta imagem foi carregada por Yasmim ao subir no palco, emocionada, aplaudida de pé, juntando-se às equipes citadas neste texto, em ocasiões onde sente-se que estas premiações têm algum sentido; que a oportunidade para a voz ser ouvida faz a diferença. É o troféu que realmente tem significado.