PARAÍSO PERDIDO | Odisseia musical pelo amor
Atualizado: 4 de set. de 2020
Logo na primeira cena, Erasmo Carlos convida todo o público a adentrar neste Paraíso Perdido (2018), nome da casa de shows comandada pela família de seu personagem, o patriarca José, que serve de cenário e título do novo filme de Monique Gardenberg. Isso porque tanto a boate quanto a obra em si são uma espécie de refúgio para os últimos românticos. De um lado, estão os da música brega, como ficou popularmente conhecido este gênero que embala igualmente a trilha sonora e a narrativa do longa, e do outro, os da vida, que ainda acreditam que o amor está acima de todas as dificuldades de um cotidiano tão dramático quanto as canções interpretadas naquele palco.
Obstáculos também não faltaram no caminho da cineasta que ficou oito anos sem filmar, desde Ó Paí, Ó, com o longa de 2007 e a série derivada homônima, exibida entre 2008 e 2009 na Globo. Também diretora teatral, Gardenberg se dedicou aos palcos, onde trabalhou em várias peças com Marjorie Estiano, atriz que traz como talismã aqui, na pele da ambígua presidiária Milene – e que também estará em cartaz na próxima semana em As Boas Maneiras (2017) –, mas não abandonou o cinema neste ínterim. Após passar três anos adaptando o romance epistolar do israelense Amós Oz, A Caixa Preta (1987), mais dois na adaptação do livro de estreia de Ana Miranda, Boca do Inferno (1990), e ver que nenhum dos projetos conseguia sair do papel para o set de filmagem, ela enxergou uma saída na sua própria criatividade. “Uma história minha, que dependia só de mim”, explicava, na coletiva de imprensa de divulgação da produção em São Paulo, na última segunda (28), a realizadora que havia levado as páginas de Chico Buarque às telas em Benjamim (2003) e a peça de Márcio Meirelles em ambas as produções ambientadas no cortiço do Pelourinho, em Salvador, e agora volta a fazer um filme autoral.
Monique sabia que queria trazer um universo mais popular como o de Ó Paí, Ó, mas o da música romântica popular brasileira só surgiu como pano de fundo para seu mais recente trabalho, com É Impossível Acreditar que Eu Perdi Você, de Márcio Greyck. Ao escutar a canção, ela começou a imaginar esboços do que seriam as personagens Celeste, a neta grávida vivida por Julia Konrad, de Malhação: Seu Lugar no Mundo (2015-16), em seu primeiro longa; Eva, a filha presa há anos por matar um homem, que é interpretada por Hermila Guedes, de O Céu de Suely (2006) e Era Uma Vez Eu, Verônica (2012); e Nádia, uma cantora que ficou surda que é encarnada por Malu Galli, de Aos Teus Olhos (2017) e O Contador de Histórias (2009). Daí, a cineasta se pôs a escrever o roteiro sem uma direção exata, “como quem espera o próximo capítulo”, afirma.
Para tanto, ela dispôs de um elenco bem diverso para dar vida aos personagens tão diferentes e também plurais que criou neste mosaico que habita a Paraíso Perdido, desde a escolha de Erasmo Carlos como este acadêmico que se refugia no mundo que criou nesta boate, após o desaparecimento da esposa durante a Ditadura. O cantor, que declarou aos jornalistas que a cultura que adquiriu em vida veio das histórias em quadrinhos e do cinema, onde já foi premiado por Os Machões (1972), disse que adotou um tom menor, a la Burt Lancaster em O Leopardo (1963), a pedido da diretora. Gardenberg também trouxe Seu Jorge, já experiente nas telas com Cidade de Deus (2002) e A Vida Marinha com Steve Zissou (2004), como o cantor e motoboy Teylor e apostou muito bem em Jaloo, ao ver os clipes do artista paraense e confiar a ele, quando o mesmo não tinha certeza, o papel de Ímã, neto de José que mostra a sua voz, subindo ao palco como drag queen.
Os dois cantores comentaram sobre a familiaridade deles com a música brega, desde a infância: no caso de Seu Jorge, na Baixada Fluminense, com o gênero chegando através dos migrantes nordestinos; ou em Castanhal, no Pará, onde Jaime Melo Jr. cresceu com os pais ouvindo essas canções e trouxe essa carga emocional da “sofrência” para o seu trabalho, sob a alcunha Jaloo. Julia Konrad, que já trabalhou sua vertente musical em outros papéis na TV, contou à imprensa que sua família era amiga de Reginaldo Rossi, enquanto Júlio Andrade, que já teve banda e se apresentou em barzinhos antes de se tornar um dos melhores atores em atividade, de Sob Pressão (2017-) e 1 Contra Todos (2016-), confessou que todo o personagem que ele faz tem uma trilha, o que se torna ainda mais fácil com Angelo, o cantor que é filho de José, pai de Celeste e nunca esqueceu seu grande amor. Por outro lado, Malu Galli comentou que apesar do desafio de carregar o drama de Nádia, como uma mulher que ficou surda por causa de violência doméstica e sofre de síndrome do pânico, a personagem é solar.
Ela é a mãe de Odair, o protagonista vivido por Lee Taylor, de Riocorrente (2013) e no ar em Onde Nascem os Fortes (2018), que falou de sua preocupação de alinhar-se com a cineasta para, além da construção do personagem, “contribuir para a narrativa”, já que é o jovem policial civil que a conduz, sendo o ponto de vista do público ao conhecer as personas deste lugar, quando socorre Ímã de uma agressão covarde e se torna seu segurança durante à noite. O ator Humberto Carrão, de Aquarius (2016), que interpreta Pedro, um rapaz que se interessa pela cantora drag, mas se sente desconfortável com este sentimento, destacou ainda os altos números de violência transfóbica e contra pessoas LGBT, em geral, que motivaram Monique, como a própria declara, a construir este “Paraíso Perdido como um microcosmo de liberdade e diversidade”. A diretora, que já abordava a homossexualidade indiretamente em seu début Jenipapo (1995), chegou até a filmar uma cena de sexo a três inspirada em Violência e Paixão (1974), também de Luchino Visconti e com Burt Lancaster, mas que, apesar de bonita, ficou tão presa à referência que perdeu seu erotismo e ficou artificial, sendo cortada por ela mesma, que se autodenominou como uma “Maria Antonieta” nestes casos com as suas obras.
Mas a ideia de uma sexualidade liberta de amarras permeia toda a trama, cuja inspiração na liberdade que havia neste sentido na Grécia Antiga, vem de modo mais explícito na citação do mito de Vulcano, que representa a rejeição de certo pai à gravidez, e implicitamente no nome do protagonista, que não só é uma homenagem a Odair José, como também a Odisseu, fazendo sua própria Odisseia de volta ao lar, depois de anos, através de seu arco dramático, como detalhou a realizadora. No entanto, mais do que dos gregos, ela bebe da fonte do brega para fazer algo além do que uma compilação de reinterpretações do elenco de canções de ícones desse estilo musical, a exemplo dos citados Rossi e Greyck, a uma composição de Raul Seixas e um clássico de Roberto Carlos – e Erasmo, claro –, que, embora não tenha recebido o mesmo selo, se aproximava muito dentro dessa abrangente música romântica popular – há espaço na produção, que tem direção musical de Zeca Baleiro, até para uma interessante versão de You're So Vain, de Carly Simon, na voz de Jaloo. Certos versos são transformados em diálogos, entre outras inúmeras referências que os fãs do gênero irão se deliciar no decorrer do filme, que, em si, é tão superlativo quanto as histórias de amor, traição e etc. deste tipo de música.
Se o espectador pode demorar alguns minutos para aceitar o convite de José e entrar neste mundo à parte, pela estranheza inicial no texto e na montagem, logo que mergulha neste universo, se torna até condescendente com as convenções de uma trama rocambolesca e de toques melodramáticos, que se justifica na ambientação deste imaginário brega. Mais que isso, o público vê um mosaico de pessoas que, mesmo com pouco tempo de tela, encontram suporte no roteiro de Gardenberg, com sua dita “psicanálise dos personagens”, e no ótimo elenco que tem em mãos, em uma narrativa em espiral que desvenda aos poucos o passado desse clã e igualmente seriada na apresentação destas figuras. Monique, aliás, vislumbrou rapidamente, no final da coletiva, a possibilidade do filme se tornar uma série, o que seria perfeitamente possível já que, no embate que a obra sempre trava entre amor e paixão versus sofrimento, dor e violência, é o sentimento de união e apoio de família que se sobressai e faz todos esses personagens saírem deste Paraíso Perdido para enfrentar o mundo.
Zeca Baleiro, Seu Jorge, Julia Konrad, Júlio Andrade, Monique Gardenberg, Erasmo Carlos, Kaloo, Humberto Carrão e Marjorie Estiano na coletiva de imprensa de Paraíso Perdido (Foto: Vitor Búrigo)
Paraíso Perdido (2018)
Duração: 110 min | Classificação: 14 anos
Direção: Monique Gardenberg
Roteiro: Monique Gardenberg
Elenco: Lee Taylor, Julio Andrade, Jaloo, Julia Konrad, Erasmo Carlos, Malu Galli, Hermila Guedes, Humberto Carrão, Seu Jorge, Felipe Abib e Marjorie Estiano
Distribuição: Vitrine Filmes
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