A LIVRARIA | Uma ode às palavras
Atualizado: 12 de ago. de 2020
Há de se esperar em um longa-metragem chamado A Livraria (2017), baseado em um romance homônimo, escrito por Penelope Fitzgerald em 1978, e centrado justamente na história de uma viúva que abre uma loja do gênero em meados dos anos 50, que alguns títulos clássicos apareçam como referência. Narrativamente, Lolita (1955) de Vladimir Nabokov e toda a sua polêmica repercussão na época de seu lançamento se destacam nos desdobramentos da trama trazida às telas por Isabel Coixet. Contudo, a obra ganhadora de três prêmios Goya, considerado o “Oscar espanhol”, como Melhor Filme, Direção e Roteiro Adaptado para a cineasta catalã que costumeiramente realiza produções internacionais – incluindo seu elenco –, encontra seu simbolismo e diálogo entre passado, presente e futuro na referência à Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury.
No futuro distópico criado nas páginas do escritor norte-americano, há 65 anos, os livros são proibidos e, por isso, queimados em uma sociedade hedonista sempre à procura de divertimento frívolo. Nas linhas escritas pela autora inglesa, 25 anos depois, e adaptadas atualmente ao cinema pela diretora espanhola, trazer livros para Hardborough, uma pequena cidade litorânea inglesa em pleno pós-Guerra parece um despropósito, como sugerem as primeiras falas dirigidas à Florence Green (Emily Mortimer) ao chegar no lugar e na história. Maior loucura, então, parece bater de frente com Violet Gamart (Patricia Clarkson, se tornando habituée nos filmes de Coixet), importante figura do local, que deseja, agora que a viúva resolveu alugar a Old House para a sua livraria, transformar o imóvel antes abandonado em um centro de artes.
Apesar de ser muito interessante como essas ameaças de Violet e outras figuras importantes do lugarejo são realizadas “discretamente”, de modo enviesado, as motivações para uma perseguição tão ferrenha da primeira à forasteira literária não são tão fundamentadas ou exploradas na sutileza buscada pela obra, embora a questão do conservadorismo paire, vez ou outra, na narrativa. Por outro lado, é muito interessante ver uma protagonista resoluta em seus princípios e ideais, quanto a abrir a tal livraria pela lembrança do marido falecido na II Guerra Mundial e mantê-la contra toda uma cidadã, tendo o apoio apenas da pequena e esperta menina Christine (a carismática Honor Kneafsey), mesmo que timidamente na sua insegurança no trato social – ficando no mundo dos livros, pode recordar brevemente a Fanny Price de Mansfield Park (1814), a heroína mais diferente das obras de Jane Austen, citada brevemente em uma imagem. Trata-se de uma rica construção que dá dimensionalidade à personagem e que Mortimer conduz com destreza e evitando a falta de empatia da qual Florence poderia ser acusada em mãos erradas.
Aliás, assim como a protagonista tem uma coragem silenciosa, o filme evita a obviedade de um retrato leve e inspirador para se tornar cada vez mais sombrio. Até o modo como é desenvolvido o vislumbre de um romance entre a Sra. Green e o Sr. Edmund Brundish (Bill Night, igualmente ótimo), que se comunicam primeiramente pela venda a domicílio de livros e, depois, pessoalmente em poucas ocasiões, foge do comum. Os encontros entre o recluso homem misterioso da cidade e a tímida livreira são construídos, nas atuações deles e na direção, através de longas pausas, como se os personagens tão letrados buscassem sempre o que falar, dentro de sua inabilidade de se comunicar. No filme que tem como narradora Julie Christie, que estrelou Fahrenheit 451 (1966), adaptação do livro por François Truffaut, a importância das palavras escritas é clara, mas as faladas também são cuidadas com esmero por Coixet.
A Livraria (The Bookshop, 2017)
Duração: 113 min | Classificação: 10 anos
Direção: Isabel Coixet
Roteiro: Isabel Coixet, baseado no livro “A Livraria” de Penelope Fitzgerald
Elenco: Emily Mortimer, Bill Nighy, Patricia Clarkson, Hunter Tremayne, Honor Kneafsey, James Lance, Frances Barber, Reg Wilson e Julie Christie (veja + no IMDb)
Distribuição: Cineart Filmes