PROJETO FLÓRIDA | Welcome to the Tragic Kingdom
Atualizado: 10 de ago. de 2020
Era uma vez, um grupo de rock e ska da cidade californiana de Anaheim que alçaria o seu maior sucesso com o terceiro álbum, cujo nome vem da última faixa, livremente inspirada na vizinha deles, Disneylândia. Só que ao contrário da magia vendida no primeiro parque temático concebido por Walt Disney, a imagem descrita é decadente na épica e aterrorizante composição deles. Já presente na ironia do título Tragic Kingdom, a crítica feita pelo No Doubt com a sua música, lá em 1995, encontra outro conto de fadas às avessas, mais de vinte anos depois, no filme Projeto Flórida (2017) e seu retrato vibrante, criado por Sean Baker, de um reino tragicamente real e não tão distante dos, agora, mais famosos parques da companhia em Orlando.
O cenário é o peculiar Magic Castle, um dos vários hotéis de beira de estrada nos arredores do centro turístico da cidade, algo deixado mais nas entrelinhas do que escancarado na trama, que sabiamente usa elementos de reconhecimento, como o show de fogos de artifício vistos ao longe, em uma triste, mas singela comemoração das personagens. Uma oposição que o longa busca desde sua protagonista, Moonee (a revelação Brooklynn Prince), uma menina de seis anos que “mora” no local com a sua mãe Halley (Bria Vinaite) e, apesar de copiar os modos rudes e o palavreado chulo desta figura materna também infantil e do mundo adulto que vê ao vivo, nas músicas ou na TV, mantém o espírito comum da idade e certa ingenuidade ao brincar com seus amigos, o vizinho e parceiro constante Scooty (Christopher Rivera), o colega do hotel ao lado Dicky (Aiden Malik) e a recém-chegada lá no Futureland Inn – veja como os nomes são curiosamente contraditórios com a realidade – Jancey (Valeria Cotto), sua nova companheira de sorvetes e travessuras. E um paradoxo que Baker equilibra magistralmente ao apresentar este imaginário das crianças, capazes de transformarem o pouco que têm ali e na região em seu próprio parque de diversões, e os problemas tão sérios que as cercam.
O viés pode ser diferente, mas o olhar para figuras marginalizadas conduz toda a filmografia do cineasta. Assim como fez no mais cômico Tangerine (2015), representando Los Angeles, “uma mentira embalada num papel bonito” como dizia uma das personagens, pelo prisma de duas amigas trans e prostitutas nas ruas da “cidade dos sonhos”, ele desvenda uma Orlando e uma Flórida à margem das promessas de diversão, conforto e felicidade oferecida aos turistas – incluindo os brasileiros, devidamente lembrados aqui em uma cena impagável –, justamente pelo ponto de vista de Moonee & Cia, a quem tudo aquilo foi destinado originalmente, mas são privadas disso. Tanto que sua câmera, na usual steadycam utilizada por Sean para acompanhar seus personagens, geralmente está na altura das crianças no desbravar deste mundo particular.
São os frutos de uma degradação que passa de geração para geração, não só visível em Halley como principal representante destas jovens que foram mães adolescentes apresentadas na produção, e que, sendo uma stripper desempregada, vive de subempregos, como vender perfumes falsificados na porta hotéis e resorts de luxo perto dos parques. O exagero e histeria com que a novata Bria Vinaite – o diretor a encontrou via Instagram – constrói essa jovem mãe, toda tatuada e sempre alta pode incomodar parte do público, mas não deixa de ser verdadeira, especialmente no modo como ela, apesar de suas atitudes questionáveis, ama a filha, mesmo que de um jeito torto. O olhar do público, então, se aproxima ao do gerente Bobby, interpretado por Willem Dafoe, devidamente indicado ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por sua atuação como essa figura quase paterna, que briga, mas se preocupa com as duas e todos ali, enquanto possui seus próprios problemas familiares, implícitos em uma cena.
Obviamente, tamanha dualidade não se sustentaria, se Brooklynn Prince não desse autenticidade à sua protagonista, passando longe dos artifícios de crianças mirins tentando ser adultas, mesmo nos momentos mais críticos de Moonee, ou se o roteiro de Barker e Chris Bergoch, seu parceiro de escrita nos longas anteriores, não fundamentasse isso. O aspecto nostálgico e irônico sobre a infância está presente já na escolha de Celebration do Kool & The Gang como música de abertura, mas a narrativa do cotidiano a que o texto se propõe não é nem sarcástica ou condescendente com seus personagens. E quando o seu tom quase documental parece perder o prumo, na sucessão de várias cenas da menina brincando na banheira, soando até repetitivo, tanto o script quanto a montagem, realizada pelo próprio diretor, se revelam um passo à frente do espectador ao lhe mostrar como inocência e malícia podem estar lado a lado.
Por isso mesmo, a fotografia de Alexis Zabe e o design de produção de Stephonik Youth evitam a sobriedade e buscam uma paleta de cores que segue o arco-íris, cujo tesouro em seu final sempre é privado a essas pessoas, desde o amarelo da parede da abertura ao roxo do hotel, passando pelos tons de azul constantes e por aí vai. Aliás, as filmagens em 35mm são interrompidas na cena final, gravada em um estilo de guerrilha com o celular – algo que o cineasta fez inteiramente em Tangerine com iPhones. O encerramento parece brusco, mas dentro da melancolia, desalento e crítica presentes, está outro tema que é caro a Baker: a amizade, centro do longa anterior e da relação intergeracional de Uma Estranha Amizade (2012), por exemplo, e que aqui sustenta as boas memórias e os sonhos de uma simples menina.
Projeto Flórida (The Florida Project, 2017)
Duração: 111 min | Classificação: 14 anos
Direção: Sean Baker
Roteiro: Sean Baker e Chris Bergoch
Elenco: Brooklynn Kimberly Prince, Bria Vinaite, Willem Dafoe, Valeria Cotto, Christopher Rivera, Mela Murder, Josie Olivo, Aiden Malik, Edward Pagan, Caleb Landry Jones e Carl Bradfield (veja + no IMDb)
Distribuição: Diamond Films
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