LADY BIRD – A HORA DE VOAR | O que nos é familiar
Atualizado: 6 de ago. de 2020
Em certo ponto de Frances Ha (2012), a protagonista sai de Nova York para passar as festas de final de ano com a família em Sacramento, na terra natal e com os pais da própria intérprete, Greta Gerwig. No filme que a despontaria para o público, a atriz também foi responsável pelo roteiro com o diretor e parceiro de vida Noah Baumbach, embora já havia roteirizado outros filmes da cena mumblecore nova-iorquina, de longas de baixíssimo orçamento, feitos com câmeras digitais e usando o improviso de cenas cotidianas, como Nights and Weekends (2008), o qual codirigiu com Joe Swanberg.
Agora em sua estreia solo na direção, a agridoce comédia premiada pelo Globo de Ouro, Lady Bird – A Hora de Voar (2017), a cineasta igualmente volta para casa, trazendo uma personagem-título que se assemelha a uma versão jovem de Frances ou, até certo ponto, dela mesma. O ambiente em que Gerwig insere sua heroína Christine “Lady Bird” McPherson (Saoirse Ronan) pode ser autobiográfico: Sacramento, mãe enfermeira, escola católica e último ano de ensino médio começando em 2002, em uma Costa Oeste vendo quase que de longe o país pós-11 de Setembro. No entanto, Greta afirma que nada da trama aconteceu especificamente com ela, muito menos na rebeldia de seu alter ego ou na relação materna.
A adolescente de 17 anos das telas deseja fortemente ir para a Costa Leste, especialmente Nova York, “onde há cultura” e a questão é o grande ponto de conflito entre ela e a mãe Marion (Laurie Metcalf), mas não o único. Assim como seu aparente desprezo à Sacramento e também aos preceitos religiosos vigentes no colégio, à sua condição socioeconômica – a família vive em um vácuo entre a classe média e a pobreza, que pode ser ainda mais reconhecível para plateias brasileiras – e aos conselhos dos pais – o dramaturgo e ator Tracy Letts interpreta a compreensível figura paterna –, há uma autorrejeição da própria Christine ao adotar a alcunha de Lady Bird. Essa incompreensão de si mesmo em uma época de formação rege este coming of age que no processo de amadurecimento da personagem traz a boa e velha formatura, as agruras amorosas com o doce colega das aulas de teatro Danny O'Neill (Lucas Hedges, indicado ao Oscar passado por Manchester À Beira-Mar, de 2016) e o roqueiro paranoico Kyle Scheible (do igualmente talentoso Timothée Chalamet, indicado agora por Me Chame Pelo Seu Nome, de 2017) e outros clichês do gênero. Ou será que seriam simplesmente situações cotidianas?
Alguns podem dizer que a avalanche de distopias juvenis pode ter feito o público e a crítica supervalorizar os poucos filmes adolescentes “normais” que surgiram nos últimos anos, mas é fato que os poucos exemplares da safra atual tem algo de especial a dizer justamente na sua forma não idealizada de representar este período crucial, a exemplo de Quase 18 (2016), com quem este conversa. Se Lady Bird não traz a mesma acidez do outro dèbut na direção de uma roteirista, no caso Kelly Fremon Craig, por outro lado, soluciona melhor as questões do outro, seja na resolução da protagonista, lá vivida por Hailee Steinfeld, ou no modo como a relação com a mãe é aprofundada, justamente por ser o foco deste. Diferente da discrição com que Quase 18 se torna um artigo cult do gênero, o controle e as nuances da obra de Gerwig não a fizeram passar despercebida pela temporada de premiações, alçando cinco indicações ao Oscar 2018: Melhor Filme, Direção, Roteiro, Melhor Atriz para Saoirse Ronan e Atriz Coadjuvante para Laurie Metcalf.
A sequência inicial, em que a garota se joga do carro da mãe após um choro conjunto e uma discussão pode parecer indicar uma história extravagante, mas, durante todo o resto, o filme busca o ordinário, com a direção de Greta o transmitindo através de sua aparente simplicidade. A força de Lady Bird, porém, reside no seu roteiro, também assinado pela diretora, especialmente nos diálogos entre mãe e filha, alternando entre uma terna cumplicidade e ríspidas críticas e acusações, ou vice-versa, em segundos. O material oferece à Metcalf a oportunidade de fazer uma das melhores performances das coadjuvantes indicadas pela Academia, embora sua atuação encontre um caminho totalmente oposto à da favorita na categoria, Allison Janney por Eu, Tonya (2017); e à Ronan, já com duas indicações por Desejo e Reparação (2007) e Brooklyn (2015), a de se confirmar mais uma vez como um dos principais nomes da “nova geração”, na postura firme e desbravadora de Lady Bird, mas discretamente vacilante nas suas incorreções e incertezas de Christine.
Neste sentido, repare como, diferente do que é habitual, o longa em nenhum momento atesta o talento da protagonista, deixando o público tão no escuro sobre suas escolhas quanto ela. É só um dos elementos de identificação que a obra oferece ao espectador. Em maior ou menor grau, há quem se encontre ali na ânsia de sair de casa, na tentativa de ser outra pessoa, nas frustrações amorosas, discussões sobre a faculdade e a carreira e, até mesmo quem é unha e carne com seus pais, já passou por aquela situação em que a matriarca se mostra irredutível a suas desculpas para aumentar ainda mais sua culpa, ficando apenas na personagem central.
Estendendo a lente para as outras figuras que a cercam, desde o drama de Danny ao do padre professor de teatro (Stephen Henderson), passando pela sua melhor amiga Julie Steffans (Beanie Feldstein, de Vizinhos 2, de 2016), o filme versa sobre a inadequação. Pela forma como ele ecoa durante e após a projeção, o espectador se questionará ao fim se esta é realmente a melhor versão de si mesmo, mas como a jovem que precisou sair para se conciliar consigo mesmo, a resposta de Lady Bird é que o amor, seja materno, por uma cidade ou próprio, se manifesta de maneira nada óbvia, mas sempre verdadeira.
Lady Bird – A Hora de Voar (Lady Bird, 2017)
Duração: 94 min | Classificação: 14 anos
Direção: Greta Gerwig
Roteiro: Greta Gerwig
Elenco: Saoirse Ronan, Laurie Metcalf, Tracy Letts, Beanie Feldstein, Lucas Hedges, Timothée Chalamet, Jordan Rodrigues, Marielle Scott, Stephen Henderson, Lois Smith, Odeya Rush, John Karna e Jake McDorman (veja + no IMDb)
Distribuição: Universal Pictures