EU, TONYA | Um replay do Triplo Axel da vida de Tonya Harding
Atualizado: 6 de ago. de 2020
Salto de maior dificuldade e, consequentemente, que recebe a maior pontuação na patinação artística, o Triplo Axel se caracteriza pelas três rotações e meia do atleta no ar, após decolar de frente – um diferencial criado pelo patinador norueguês Axel Paulsen, em 1882. Primeira mulher norte-americana a completá-lo em competição, a executá-lo em um campeonato internacional e a pioneira no mundo a fazê-lo duas vezes em um mesmo torneio, tudo no ano de 1991, Tonya Harding é dificilmente lembrada pelo seu feito, até hoje alcançado por poucas patinadoras. O bizarro ataque de sua principal concorrente no país, Nancy Kerrigan, durante a preparação para o campeonato nacional, às vésperas das Olimpíadas de Inverno de Lillehammer 1994, orquestrado pelo seu ex-marido Jeff Gillooly e Shawn Eckhardt, o autointitulado guarda-costas dela, pôs fim à sua carreira e se sobrepôs a qualquer legado esportivo.
Mais de vinte anos depois de sua quase ascensão e queda, Eu, Tonya (2017) chega aos cinemas as duas e tantas outras faces de sua protagonista em uma cinebiografia que busca contextualizar as imagens pelas quais foi eternizada, apontando cada uma das três voltas e meia que ela teve de enfrentar em sua vida e tentar cair de pé, mas claramente sem cravar. Como no tal Triplo Axel, Harding, interpretada aqui pela australiana Margot Robbie, teve de saltar de frente contra o preconceito que enfrentou dentro da própria patinação artística e dar um meio giro para provar sua capacidade para os juízes. Mesmo assim, por não portar a figura “feminina” e a classe que as pessoas do esporte, ainda carregando seu jeito “caipira”, incluindo sua treinadora (Julianne Nicholson) exigiam, sua glória alcançada com o recorde nunca foi completa.
Apesar da filmografia totalmente variada de Craig Gillespie, que despontou com a dramédia indie A Garota Ideal (2007), já passou pelo terror com o remake A Hora do Espanto (2011) e, por último, foi responsável pela ação marítima e histórica de Horas Decisivas (2016), esse cenário esportivo não é novo para o cineasta. Mas em vez de seguir pelos mesmos caminhos convencionais da comédia com basquete de seu dèbut Em Pé de Guerra (2007) e o drama sobre basebol de Arremesso de Ouro (2014), o diretor opta pela farsa e o humor negro para fazer jus à história e a figuras tão inusitadas que tem em mãos, enquanto a sua câmera e a edição correm mais rápido do que a de uma transmissão da modalidade. Com uma justa indicação ao Oscar 2018, a montagem de Tatiana S. Riegel não é apenas ágil, mas a complexa ligação entre a representação clássica, a interpretação de um registro documental cujas entrevistas dos personagens seguem o estilo mockumentary e a quebra da quarta parede durante a própria trama ficcional.
No entanto, o que se sobressai a essas piruetas nem sempre “limpas” da direção são os elementos artísticos da produção que preenchem esta coreografia. Um deles é Allison Janney, também indicada ao prêmio da Academia como Atriz Coadjuvante pelo papel da mãe LaVona Golden e que segura um tipo em si caricatural – tanto que parece surreal, mas as imagens reais reveladas ao final provam que não – para não cair no escracho e se tornar marcante para a plateia. Isso porque, ao retornar à primeira rotação da vida de Tonya, o filme revela como desde a infância e a adolescência ela era um alvo a quem lhe atiravam algo, seja golpes físicos ou verbais, começando pela figura materna.
Os abusos da mãe, que se intensificam quando seus pais se separam, são colocados pelo roteiro de Steven Rogers como o início da espiral de degradação constante da protagonista, na qual o segundo giro vem de onde ela esperava salvação. Para logo sair de casa, ela ainda com 19 anos se casa com seu namorado Jeff Gillooly (Sebastian Stan), numa cena em que a escolha do suave clássico Dream a Little Dream of Me na trilha sonora – basicamente com rocks do final dos anos 1970, inspirados na apresentação dela com ZZ Top e uma força rebelde que ela exalava dentre suas colegas e toda a classe da modalidade – ironicamente demonstra como aquele sonho de felicidade foi curto. Tendo trabalhado mais com romances, como Quando o Amor Acontece (1998), Kate & Leopold (2001) e P.S. Eu Te Amo (2007), além do drama familiar Lado a Lado (1998), o roteirista, no entanto, não procura romantizar a relação deles desde a cena seguinte a do encontro dos dois, intercalando o drama à comédia mordaz que propõe.
O então ex-marido, ainda presente em sua vida, e seu delirante amigo Shawn Eckhardt (Paul Walter Hauser) põem em prática o estúpido plano contra Nancy Kerrigan (Caitlin Carver) e, no primeiro indício de seu envolvimento no caso, ela começa a ser perseguida pela imprensa de todo o país, ao mesmo tempo em que uma multidão de pessoas passou a acompanhar seus treinos pré-Jogos Olímpicos em um shopping de sua terra natal, Portland, no Oregon. Nesta última volta significativa da trajetória de Harding, o abuso vem da necessidade de heróis e vilões na narrativa cotidiana norte-americana; tanto que é deixada de lado pela mídia quando outro escândalo criminal surge, curiosamente relacionado a outro esportista, o jogador de basebol O.J Simpson como fica sugerido pela imagem na TV. Nessa canibalização midiática e da opinião pública que ela sofre, a mesma se aproveita deste mecanismo para sobreviver, ainda que continuando a ser uma piada pronta até no esporte que escolheu seguir depois.
Em um instante, porém, no meio de toda a comicidade instigada pela obra, a mesma para esse giro frenético e faz brotar um sentimento de culpa no espectador, como parte integrante da exploração dessa garota, recordando brevemente a sensação deixada pelo excelente documentário Amy (2015). Ajudam nisso a contextualização e a atuação de Margot Robbie tão enérgica quanto a retratada, captando essas nuances da talentosa, mas displicente patinadora e transmitindo uma das verdades conflitantes que Eu, Tonya apresenta e sendo merecidamente lembrada na categoria de Melhor Atriz na última das três indicações do filme ao Oscar. Contudo, não justificam Tonya Harding, seja qual for final o grau de participação que ela tenha tido naquele ato infeliz. Por isso, aqui o seu famoso choro em Lillehammer 94 se torna ainda mais patético ao público, seja pelo real significado do adjetivo, ao gerar pena pela própria situação nas Olimpíadas e a pressão que ela estava sentindo, ou igualmente pela conotação usual, ao ser consequência de atitudes tão idiotas.
Eu, Tonya (I, Tonya, 2017)
Duração: 120 min | Classificação: 14 anos
Direção: Craig Gillespie
Roteiro: Steven Rogers
Elenco: Margot Robbie, Sebastian Stan, Allison Janney, Julianne Nicholson, Paul Walter Hauser, Bobby Cannavale, Bojana Novakovic, Caitlin Carver, Mckenna Grace e Maizie Smith (veja + no IMDb)
Distribuição: Califórnia Filmes
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