OS INICIADOS | Ritos de masculinidade
Atualizado: 31 de jul. de 2020
Os rostos pintados com argila branca distinguem os jovens garotos que passam por um tradicional ritual Xhosa, tribo que ocupa principalmente o sudoeste da África do Sul, que é registrado em tom quase documental por Os Iniciados (2017). Esse é o nome dado aos adolescentes que, neste processo, vão para as montanhas, são circuncidados de um jeito totalmente rústico, permanecem em jejum de comida e água por uma semana em uma pequena cabana durante a cicatrização e ficam um mês tendo lições na natureza para se tornarem homens. Entretanto, no longa de estreia de John Trengove, candidato sul-africano presente na pré-lista de indicados ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, a pintura ancestral adquire a ideia da máscara de masculinidade que eles deverão assumir dali para frente em suas vidas.
Todo o questionamento sobre o que é ser homem, se está na figura do macho provedor, se passa pelo próprio órgão sexual, como questiona um dos personagens, ou ser verdadeiro à sua essência, perpassa o filme através de sua esfera ficcional, um romance dramático guiado pelo thriller psicológico. O cantor sul-africano – assumidamente gay – Nakhane Touré faz o seu debut nas telas como o protagonista Xolani, ou simplesmente X para o seu amigo Vija (Bongile Mantsai), com quem mantém um caso secreto, já que o outro é casado com uma mulher e tem filhos. O operário de uma fábrica, então, segue a tradição de partir para as montanhas e cuidar de um ou mais iniciados, só com a intenção de estar perto dele do amado que conhece desde a infância e também ajuda na mesma prática.
Desta vez, o seu iniciado é Kwanda (Niza Jay Ncoyini), um jovem de Joanesburgo cujo comportamento é considerado estranho pelo pai, que pede para Xolani ser duro com o filho no ritual. O jovem, melhor resolvido consigo mesmo, enfrenta o preconceito pelo seu jeito e sua melhor condição social por parte dos outros garotos, enquanto percebe a hipocrisia de seu mentor e, especialmente, do amigo dele, criando uma tensão entre o trio de personagens, em um jogo manipulativo de sedução e poder que, ao mesmo tempo, sugere um triângulo amoroso e coloca o desejo e a violência como motores dessa masculinidade. Trengove, que guarda certa discrição ao registrar a circuncisão, faz o mesmo com o sexo, ressaltando o fato dos dois amantes esconderem seus sentimentos e ações ao filmar seus encontros de maneira enviesada atrás da porta ou na contraluz quando estão a céu aberto.
Além de versar sobre homofobia e os parâmetros socioculturais que moldam essa frágil masculinidade, ecoando de modo regional o discurso visto no ano passado em Moonlight: Sob a Luz do Luar (2016), Os Iniciados traça um embate mais amplo entre a tradição e a modernidade na sociedade sul-africana. Por mais que a produção que circulou pelos festivais de Sundance e Berlim não aborde o debate cada vez maior no país sobre a periculosidade do ritual, com alto risco de infecção, deformações no órgão genital e até mortes, o choque entre esses costumes enraizados e o pensamento ocidentalizado, claro desde a declaração de um ancião de que os meninos da cidade não têm coragem e os questionamentos de Kwanda, é em si mais trágico aqui. Se o “novo” assusta e chega a ser até intransigente em suas certezas, o “velho”, acuado, pode ser infligir um silêncio muito mais brutal.
Os Iniciados (Inxeba, 2017)
Duração: 88 min | Classificação: 16 anos
Direção: John Trengove
Roteiro: Malusi Bengu, Thando Mgqolozana e John Trengove
Elenco: Nakhane Touré, Bongile Mantsai, Niza Jay Ncoyini, Thobani Mseleni e Gabriel Mini (veja + no IMDb)
Distribuição: Zeta Filmes