LIGA DA JUSTIÇA | O dualismo de ser herói, hoje, nas telas
Atualizado: 20 de mai. de 2021
Liga da Justiça (2017), a mais nova produção do Universo Extendido DC, teve uma longa jornada até sua concepção para as telonas. O filme do grupo de heróis já esteve perto de se tornar realidade inúmeras vezes, inclusive pelas mãos do cineasta George Miller, responsável pela quadrilogia Mad Max e pela animação Happy Feet (2006). A fragilidade destas tentativas se evidenciava nas produções solos de seus personagens. A Warner Bros. Pictures nunca explorou, de fato, a quantidade imensa de heróis que compõem o vasto universo DC, restringindo-se às produções do Batman e Superman – e mesmo estas possuem sua parcela de erros. Quando se arriscava criativamente, nasciam equívocos como Lanterna Verde (2011) e até mesmo Mulher-Gato (2004).
Este é o peso acerca de uma produtora que possui os heróis dos heróis, o âmago destas figuras quase mitólogicas dos quadrinhos. Se Os Vingadores da Marvel existem hoje, é por causa deste grupo, e a produtora de Capitão América e companhia merece créditos por ter transformado sua linha B de heróis nos quadrinhos em verdadeiros pesos pesados desse gênero no cinema, rivalizando diretamente com os outrora mais conhecidos heróis da DC. O problema em adaptá-los vai além disso. Enquanto as figuras da Marvel são humanas, empáticas e com conflitos bem definidos, as da concorrente representam, em sua maioria, justamente o oposto. Figuras quase divinas em seus poderes, elas são ícones idealizados da virtude e boas maneiras, exemplos da perfeição perante o homem. Assim, a DC sempre pareceu vítima do legado de seus próprios personagens. Como torná-los mais interessantes?
E daí vêm a maioria das críticas negativas ao que o diretor Zack Snyder trouxe com seu Homem de Aço (2013) e Batman vs Superman (2016), obras que tentam ancorar seus personagens, à medida do possível num mundo mais próximo ao nosso, ou seja: com dilemas morais mais acinzentados – não existe mais o preto no branco, o bem versus o mal de forma tão clara –, onde todo ato de heroísmo se torna prontamente um ato político. Já dizia Adrian Veidt, o Ozymandias, em outro projeto adaptado por Snyder, a obra-prima dos quadrinhos Watchmen: "meu novo mundo requer formas menos óbvias de heroísmo".
Esta visão de descontrução do heroísmo presente em Watchmen (2009) perdura nas produções deste universo DC dirigidas por Snyder, que possuem sua parcela de cinismo. Superman não era mais o "escoteiro". Seu Batman, mais violento, é assassino. Se era a forma mais correta de trazer estes personagens às telonas ou não, tais escolhas revoltaram os fãs mais puristas de quadrinhos justamente por fugir da essência mais heroica. Em que ponto estes personagens deixam de ser eles mesmos? Os problemas de Homem de Aço e BvS, no entanto, iam muito além da simples fidelidade com material de origem, gerando uma recepção negativa da maioria dos críticos e até mesmo de uma parcela do grande público. Ainda assim, é válido dizer que as obras são muito mais interessantes – no mínimo, conceitualmente – que a maioria das produções, divertidas, mas apenas corretas e escapistas, da Marvel Studios.
Foi com Mulher-Maravilha (2017), uma produção mais convencional cinematograficamente, mas com inegável importância para o gênero de quadrinhos e filmes protagonizados por mulheres, que o Universo DC começou a encontrar um caminho para o sucesso no cinema, decidindo apostar numa leveza proveniente justamente das obras de sua concorrente. O problema é que tal decisão veio quando Liga da Justiça, que já contava com uma produção problemática que envolvia justamente correções de tom narrativo, encontrava-se em processo de pós-produção e mudanças drásticas foram impostas pelo estúdio. Como se não houvessem conflitos o suficiente, o diretor Zack Snyder se afastou da produção devido a uma tragédia pessoal e foi justamente o diretor Joss Whedon, de Os Vingadores (2012), que entrou para terminar o filme, com refilmagens extensas. Liga da Justiça manteve, então, a tradição de uma gestação turbulenta que acompanhou o grupo de super-heróis por anos.
Esta longa introdução de contexto é necessária, já que o filme de Snyder – e também, de Whedon – representa uma grande vitória se considerarmos sua longa jornada para chegar aos cinemas. Nesse sentido, Liga da Justiça é um filme significativo de muitas formas, seja na conclusão de uma espécie de trilogia iniciada em Homem de Aço, na correção de curso que faz para este universo e até mesmo no que diz respeito à clara mudança de tom da produção, evidenciando problemas de um gênero que parece cada vez mais não confiar no autoral, no distinguível. A liga chega, então, entre acertos e tropeços, mesmo que o saldo final seja positivo.
No longa, Bruce Wayne (Ben Affleck), alimentado por sua fé restaurada na humanidade e inspirado pelo ato de altruísmo de Superman, busca a ajuda de sua nova aliada, Diana Prince (Gal Gadot), para encarar um inimigo ainda maior. Juntos, Batman e Mulher-Maravilha trabalham rapidamente para encontrar e recrutar um time de meta-humanos para encarar essa ameaça recém-desperta. São eles: Arthur Curry, o Aquaman (Jason Momoa); Barry Allen, o Flash (Ezra Miller); e Victor Stone, o Ciborgue (Ray Fisher). Mas apesar da formação dessa liga sem precedentes de heróis, talvez seja tarde demais para salvar o planeta de um ataque de proporções catastróficas.
Algo visível nessa produção é, então, as visões distintas e conflitantes de dois cineastas que procuram uma exploração muito diferente dessas figuras mitológicas. Temos, por exemplo, os elementos levantados por Snyder, que imprime sua habitual estilização daquele mundo ao mesmo tempo em que inclui elementos da realidade, como na bela montagem em que retrata aparentes skinheads deserdando um mercadinho pertencente a um grupo de imigrantes. Os policiais que impedem o vandalismo esboçam certa satisfação na violência contra o criminoso. O momento é pequeno, mas confere uma camada de profundidade em sua representação desses males cíclicos dessa sociedade corrompida. Whedon, por outro lado, abraça um heroísmo que vem mais como escapismo, como diversão e falta de compromisso. É a densidade contra o pueril; saem os políticos e males "reais" e entram as piadas e um vilão unidimensional, o Lobo da Estepe (voz de Ciáran Hinds).
O que não significa que parte deste tom não venha de Snyder também, abraçando por vezes uma narrativa próxima à de uma animação, um episódio da série animada da Liga. É curioso como a montagem do filme prejudica e ao mesmo tempo justifica criativamente essas escolhas, já que as transições de cenas soam desconexas por vezes, mas atribuem esse caráter episódico que o coloca mais ainda nesse ambiente de "aventura da vez". Ela prejudica, no entanto, quando evidencia as diferenças estilísticas de seus dois diretores, alternando entre cenas que são visivelmente dirigidas por duas pessoas diferentes, seja na estética ou mesmo nos diálogos.
A computação gráfica irregular é um efeito colateral dessa produção complicada, e pode-se identificar as cenas regravadas por Whedon também pela qualidade desses efeitos. E é quase uma piada que isto tenha que ser mencionado, mas a remoção digital do bigode de Henry Cavill, o Superman, fica evidente – o ator teve que regravar cenas sem raspar o seu bigode, já que os pelos faciais fazem parte de seu personagem no filme Missão Impossível 6 (2018), que estava sendo gravado na mesma época –, atribuindo um aspecto de borracha à sua face.
O elemento mais interessante de Liga da Justiça talvez seja o papel que presta à iconografia daqueles heróis. A trilha sonora composta pelo Danny Elfman traz de volta o seu tema de Batman visto nas produções de Tim Burton e o icônico tema do Superman composto por John Williams. A música tema da Mulher-Maravilha vista em BvS e seu filme solo ganha uma repaginada menos agressiva e mais heroica. A música tema do Flash é um amálgama de várias composições, inclusive a da série de TV do canal CW. Até mesmo em suas imagens, é como se o filme prestasse homenagem às figuras pré-estabelecidas no imaginário popular, uma junção de todos estes ícones pré-existentes, e talvez seja nessa escolha que o filme se resolve – e se eleva.
A dinâmica desses personagens, então, é onde Liga da Justiça acerta, mesmo que exagere pontualmente no humor, principalmente do Flash de Ezra Miller, possuindo momentos de genuíno carisma daqueles personagens. O otimismo é a palavra aqui e, se por um lado, é realmente visível e até mesmo forçada essa mudança de tom, por outro, ela sente-se necessária e parece a progressão dos temas discutidos nas produções anteriores.
A mensagem final de esperança e heroísmo, no entanto, perde parte de seu efeito. Se ela funcionava nos filmes anteriores – excluindo, é claro, o quase indefensável Esquadrão Suicida (2016) – deste universo, era porque existia, mesmo entre a fantasia, o mínimo de densidade, de comprometimento com uma mensagem maior e até mesmo uma integridade artística. Na busca pela despretensão e pela aventura descompromissada – que funciona em sua maioria, vale ressaltar – Liga da Justiça acaba anulando o poder de seu clímax, e seu discurso final de heroísmo e esperança, que possui até uma certa metalinguagem com o caminho traçado por este universo nos cinemas, não soa tão honesto quanto poderia.
A ironia real é, então, que essa falta de autenticidade e catarse em sua mensagem de esperança venha justamente da busca pela leveza e despretensiosismo, contrapondo às propostas mais cínicas e tão criticadas de Snyder. Ainda assim, é possível dizer que os ícones do super-heroísmo receberam um filme que consegue fazer, em parte, jus à seu extenso legado.
Liga da Justiça (Justice League, 2017)
Duração: 120 min | Classificação: 12 anos
Direção: Zack Snyder
Roteiro: Chris Terrio e Joss Whedon, com argumento de Chris Terrio e Zack Snyder, baseado nos personagens criados por Jerry Siegel e Joe Shuster (Superman), Gardner Fox ("Liga da Justiça da América"), Bob Kane e Bill Finger (Batman), William Moulton Marston (Mulher-Maravilha) e Jack Kirby ("Quarto Mundo").
Elenco: Ben Affleck, Henry Cavill, Amy Adams, Gal Gadot, Ezra Miller, Jason Momoa, Ray Fisher, Jeremy Irons, Diane Lane, Connie Nielsen, J.K. Simmons, Ciarán Hinds, Amber Heard, Joe Morton e David Thewlis (veja + no IMDb)
Distribuição: Warner Bros. Pictures