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Foto do escritorCauê Petito

MOSTRA SP 2017 | Dia 10 – A beleza na feiura da vida

Atualizado: 1 de mai. de 2021

A 41ª Mostra completa 10 dias de programação, mostra o que há de Feio (2017), como mostra o filme de Juri Rechinsky, na beleza da vida, ou o belo na feiura da humanidade, a exemplo da crise dos refugiados retratada em Human Flow (2017) e Happy End (2017), ou do trágico ambiente escolar de O Rebanho (2017).

 

Cena do filme austro-ucraniano Feio (2017) | Foto: Divulgação (Mostra SP)

Em determinado momento da produção austro-ucraniana Feio, de Juri Rechinsky, acompanhamos uma mulher hospitalizada gritando de dor. Seu namorado, inicialmente ao seu lado, não aguenta os dolorosos gemidos. Passa as mãos inquietas sobre a cabeça e fuma consecutivos cigarros, não suportando aquela situação e sua impotência, sua inaptidão em ajudar de alguma forma.

Tal sentimento é partilhado por nós, já que a desagradável cena se prolonga – intencionalmente – por alguns minutos. Rechinsky quer que sintamos aqueles males, nos colocando na pele de seus personagens e nos obrigando a presenciar, quase que em tempo real, aquelas dores. Tentativas de suicídio, sexo, discussões constrangedoras de família, um banho particularmente doloroso, a deterioração mental de uma mulher com Alzheimer e até mesmo as contemplações de melancolia silenciosas e íntimas daquelas pessoas. Ele quer que presenciemos seus registros, por mais feios que sejam.

Com um filme anterior que já sugere o tipo de cinema no qual o diretor parece proposto a realizar, o documentário Sickfuckpeople (2013), a arte do pôster de Feio também é cirúrgica em passar a mensagem: uma mesa de família onde quatro pessoas estão com suas cabeças em seus próprios pratos, afogadas, perdidas fora e dentro de si mesmas.

Esse núcleo familiar é importante, já que tais relatos estão todos, de alguma forma, conectados. A garota que se contorcia de dor é Hannah (Angela Gregovic), e seu namorado, Jura (Dmitriy Bogdan). Ambos estiveram em um acidente de carro, mas essa é só a a ponta do iceberg da tristeza em um relacionamento muito mais complicado. Além disso, acompanhamos a relação de ambos com suas respectivas famílias, que possuem suas desgraças internas. Tais infortúnios são divididos, também, geograficamente, com a família de Hannah na Áustria e a de Jura na Ucrânia. A mãe de Hannah, Martha (Maria Hofstätter), está nos estágios iniciais de Alzheimer. Já a de Jura(Larisa Rusnak) tem dificuldade em lidar com a autodepreciação do filho, pedindo desesperadamente para que ele simplesmente diga que ama, algo que o mesmo não consegue, já que ele não é capaz de amar sequer a si mesmo.

A direção de fotografia de Sebastian Thaler e seu pai Wolfgang Thaler é interessante. De uma elegância e plasticidade que transformam cada composição em algo prontamente belo, ela contribui ainda mais com a angústia que se instala, já que aquelas situações contradizem a beleza com que tais imagens são registradas. Imagens que insinuam beleza, mas possuem algo de errado. Este algo são seus personagens e suas complicadas relações.

"Estou sentindo seu coração acelerado. Mas não sinto o meu", diz Hannah para Jura, numa cena onde implora para que ele transe com ela. O "I feel sick (eu me sinto mal/doente)" que Martha diz para seu marido, bêbada e prestes a vomitar, é trágico por seu duplo sentido. Em ambas as cenas, o colapso. Com Hannah e Jura, a inexpressão após o sexo. A constatação de que não conseguem sentir nada. Já Martha dorme completamente vomitada em seu marido, ambos ignorando – ou quem sabe, reconhecendo – a incapacidade de se prepararem para a situação na qual terão que lidar nos meses seguintes. O frio congelante dos pequenos aposentos ucranianos contra o calor aconchegante da casa luxuosa na Áustria. Ainda assim, nesses contrastes, encontra-se a união. A depressão é universal.

Com um design de produção inspirado – os cômodos em que Martha aparece, unanimemente brancos, refletem o triste estado mental da personagem que está por vir – e imagens evocativas, o diretor Juri Rechinsky nos submete ao desespero de seus atormentados personagens com uma câmera serena e estática, tal como Michael Haneke, presente na mostra com Happy End, faria. Entre estas imagens, há aquelas que talvez sejam as mais intrigantes do longa. Em preto e branco e extremamente granuladas – o único momento em que a plasticidade, a nitidez é abandonada –, acompanhamos cenas de uma estrada arenosa; alguém deitado; um vislumbre de um olho. Momentos que, desconexos, parecem como fragmentos de memória, de calmaria, de tempos melhores, talvez. Nunca saberemos. Em seus recortes da decadência, o filme termina com o anúncio da vida. "Você será mamãe", sussurra Hannah para Martha, que encontra-se já em seus estágios finais de Alzheimer e com um marido infeliz que a trata como uma criança bagunceira.

Após as imagens vistas em Feio, não há muito que possamos sentir com esta informação além de temor. Pela mãe, pelo pai, por suas famílias e pela criança, que será trazida a um mundo de dificuldades e angústia, habitado pelas pessoas infelizes das quais presenciamos – na 1h32 de projeção que parece consideravelmente mais longa – seus momentos mais importantes. Momentos estes que nem sempre são bonitos.


CIRCUITO SPCINE LIMA BARRETO - CCSP

28/10/17 - 18:00 - Sessão: 912 (Sábado)

CINEARTE 2

30/10/17 - 22:00 - Sessão: 1124 (Segunda)

 

Em O Rebanho, segundo longa do argentino Sebastián Caulier, o diretor procura encontrar ligações entre a raiva e sensação de inadequação social vindas com a adolescência e como a falta de discernimento e responsabilidade, que são naturais em tal período, podem ter efeitos mais graves. Se a ligação destes temas pode sugerir um texto sensacionalista, Caulier tem sucesso ao jamais percorrer estes caminhos, trazendo, ao invés, uma visão interessante sobre os temas que propõe.

Tendo como protagonista e narrador da história um jovem estudante inseguro e deslocado, O Rebanho acompanha o desenrolar da amizade do adolescente com um garoto também excluído e suscetível à sociopatia, numa relação simbiótica de rebeldia que representa uma bomba relógio de tragédia prestes a explodir.

Já abordado em algumas obras que exploram como a falta de humanidade, comunicação e a pressão pela integração social afetam mentes perdidas e suscetíveis à atos violentos, o tema ganha novo contexto neste filme, que, em vez de se apegar à histórias reais (como o excelente Elefante, de Gus Van Saint), abraça um tom mais convencional de thriller, ao passo que passeia pontualmente por outros gêneros, como um interessante coming of age – retrato da passagem da adolescência para a vida adulta – colegial.

Assim, uma rixa banal com um professor de educação física resulta num ato de rebeldia anárquica, e a cena do primeiro ato dos jovens, intensa e embalada com acordes de música punk, serve de ótimo contraste com as ações seguintes, cada vez mais perigosas e sem o senso de deslumbramento contida nessa cena inicial.

Utilizando ovelhas como parte de sua simbologia, O Rebanho tem sucesso ao misturar drama adolescente, suspense e até um tímido coming of age, em temas que acabam se fundindo muito bem nesta obra que utiliza a passageira raiva adolescente como via para tragédias maiores.


ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA - AUGUSTA ANEXO 4

28/10/17 - 14:00 - Sessão: 925 (Sábado)

ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA - FREI CANECA 4

01/11/17 - 19:50 - Sessão: 1370 (Quarta)

 

Seja por câmeras de vigilância ou planos estáticos de 9 minutos, do ponto de vista dos mais velhos ou dos mais novos, e das mais variadas classes sociais, o cinema do cultuado Michael Haneke sempre explorou o mal estar – ou mesmo a maldade em sua essência – e suas raízes. E neste Happy End, o indicado da Áustria ao Oscar, não é diferente, mesmo que a exploração dê mais espaço ao simples relato, e de que a misantropia do cineasta venha menos como um soco perverso e mais como uma risada irônica.

Partindo dessa ideia, Happy End realmente é mais parecido com o seu Funny Games (1997/2007) do que com outras obras de sua filmografia, em que há uma espécie de honestidade – ou o máximo de honestidade permitida por um cineasta conhecido pelos jogos aos quais submete sua audiência – já em seus títulos, descrevendo o projeto como ele é: A Professora de Piano (2001), A Fita Branca (2009), 71 Fragmentos de uma Cronologia do Acaso (1994). Se muitos ainda vêem tais literalidades como uma forma de jogo em si, não há neste o puro sarcasmo como nos "jogos divertidos" de Funny Games – que possui o título de Violência Gratuita no Brasil. Estamos falando de um filme de Michael Haneke, então é claro que, objetivamente, não haverá um final feliz, certo?

Sendo um final feliz algo subjetivo para Haneke, como ter sucesso em seu suicídio ou o desmantelamento de uma família burguesa privilegiada e avulsa ao mundo ao seu redor, Happy End opera como um drama cômico, retratando as relações conflitantes dessa família burguesa na alto sociedade francesa. Se em Caché (2005) o confronto dos atos passados, preconceituosos e racistas de seu protagonista – e de uma França da alta patente que ocultava tal histórico – o assombravam e causava a reflexão, na tragicomédia que é seu último filme, não há reflexão e seus personagens continuam vivenciando uma vida de banalidades, falta de comunicação e empatia – como num momento em que um personagem banaliza uma clara tentativa de suicídio.

Estabelecendo que tais relações provocam males e efeitos colaterais até mesmo nas novas gerações, criando psicopatas e pessoas deprimidas, a obra acompanha cada ato de futilidade danosa com a habitual calma de Haneke, que é sempre efetivo em causar a sensação de temor pelo pior, pela tragédia que parece estar sempre à espreita.

Casualmente se divertindo com a nova geração – e não me refiro à jovem Eve vivida por Fantine Harduin –, substituindo as filmagens de VHS de projetos anteriores por lives de Instagram/Snapchat e telas de Facebook, o diretor inclui também algumas referências, como o destino que o Georges, vivido por Jean-Louis Trintignant, dá à sua esposa, idêntico ao da obra anterior de Haneke, Amour (2012) – e "divertindo" talvez não seja a palavra mais adequada –, transformando esta obra numa espécie de sequência não oficial daquela.

O longa ganha força quando se atém aos contrastes de gerações, como no diálogo sentimental, cruel e cômico dividido pelo avô George e a jovem Eve, em posições emocionais tão tão contrastantes assim, o que torna o laço final de ambos apenas mais triste.

No entanto, essa tristeza não é refletida na tela, já que Haneke prefere punir aquelas pessoas pela vida inconsequente e egoísta que levam – com um olhar claro para a crise dos refugiados, presente na 41ª Mostra, em produções como Human Flow e O Vento Sopra Onde Quer. E a espécie de catarse e reflexão vista em obras como Caché não tem espaço no inferior Happy End. Para o diretor, tal catarse só pode vir com a miséria daquelas pessoas, que é festejada.


ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA - AUGUSTA SALA 1

28/10/17 - 21:50 - Sessão: 924 (Sábado)

ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA - FREI CANECA 1

29/10/17 - 19:30 - Sessão: 1061 (Domingo)

CINEARTE 1

30/10/17 - 16:10 - Sessão: 1116 (Segunda)

 

Se o documentário Human Flow – Não Existe Lar se Não Há Para Onde Ir, comandado por Ai Weiwei (cineasta, fotógrafo, artista e ativista responsável pela arte do pôster da 41ª Mostra) pode parecer repetitivo em muitos dos seus 140 minutos, isso é menos um problema cinematográfico e mais um revoltante fato da vida real. Tendo a crise dos refugiados como tema, Weiwei e sua equipe visitaram 23 países (entre eles Iraque, Suécia, França, Grécia, Alemanha, Quênia e Israel) dos 70 que abrigam mais de 40 milhões de refugiados (em sua maioria, do Oriente Médio) no total. Essa repetição, porém, vem do próprio contexto: são todas histórias de dor e sacrifício, sejam em campos de refugiados ou nas fronteiras delimitadas por arame farpado.

Mais do que isso, ela representa a necessidade de Ai Weiwei em deixar claro o escopo da situação e registrar o maior número de histórias, com travellings e imagens que arrepiam por apresentar, ao mesmo tempo, o belo e o feio, em seus contrastes de paisagens bonitas preenchidas por situações desesperadoras e seres danificados em busca de um lar. Ainda assim, em cada uma dessas imagens recorrentes, capturadas por 12 diretores de fotografia (com Weiwei incluso), reside a necessidade de atribuir uma face àquelas pessoas e de nos lembrar de que – mais do que números – cada um deles possui uma jornada, um contexto, uma história.

Centenas de refugiados andam pelas estradas da Suécia (e o sueco O Vento Sopra Onde Quer, que também está sendo exibido na 41ª Mostra, possui um subtexto relacionado à crise). Uma senhora na Grécia observa de sua porta da frente a chegada de refugiados. Duas israelenses preocupadas discutem a situação em que se encontram enquanto uma garotinha, sentada entre as duas, brinca com balões. Um senhor se desmancha em lágrimas ao confessar que tem pesadelos com seus amigos mortos. Weiwei consegue encontrar o humano no desumano, o indivíduo à parte do coletivo. Está interessado, no final das contas, no "fluxo humano" do título. É desesperador, em sua simplicidade, o momento em que, após percorrer o Mar Mediterrâneo de bote até a praia e ser amparado pelo próprio WeiWei (que tem uma participação contínua nas várias passagens), um dos refugiados fuma um cigarro, sem expressão alguma, como se a situação que acabou de passar fosse algo corriqueiro, trivial.

Incômodo, Human Flow é um trabalho importante, que atribui identidade para aquelas formas distorcidas que compõem os milhões de refugiados, ao mesmo tempo em que revisita as causas desta crise (a guerra civil na Síria sendo uma das principais).


ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA - AUGUSTA SALA 1

28/10/17 - 17:15 - Sessão: 922 (Sábado)

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