UNA | Dois amantes e um caso, duas partes de um crime e duas visões de um filme
Atualizado: 8 de mai. de 2020
Nem precisava PJ Harvey cantar os primeiros versos de Down By The Water, música que toca enquanto a câmera fica presa nela ainda adolescente, antes do fim do prólogo, para saber que, em algum momento, a mulher “anestesiada” na balada da cena inicial, representada por Rooney Mara, havia perdido seu coração embaixo da ponte. Na manhã seguinte, ela observa uma imagem em um recorte de papel e, para a angústia da mãe, sai com o carro, atraindo os olhares da vizinhança, assim como da plateia que logo percebe que há algo de errado com aquela garota.
Os créditos apresentam Una (2016), nome do filme e da protagonista, que pega a estrada até um grande depósito de armazenagem de uma empresa, onde procura por Ray, mas um funcionário, Scott (Riz Ahmed), lhe diz que aquele homem da foto é Peter, o seu chefe, e não demora a ficar claro que quem é o errado de toda esta história é o personagem de Ben Mendelsohn. O hoje cinquentão foi a marcante primeira paixão de Una, 15 anos atrás, mas o “detalhe” é que ela tinha apenas 13 na época (vivida com interessante empenho aqui pela jovem Ruby Stokes) e ele, que era vizinho e amigo do pai dela, foi preso por abuso sexual. A moça, ao descobrir agora o paradeiro dele, vai a sua procura confrontá-lo sobre o passado, dando origem a um dia de discussões entre os dois, dentro do refeitório e outros espaços do armazém, cuja rotina diária também é alterada pelo anúncio de cortes de pessoal na empresa, ao qual Peter é um dos responsáveis em dar a má notícia.
Seguindo uma estrutura semelhante à peça na qual foi baseado, Blackbird de David Harrower, o filme fica boa parte do tempo confinado neste cenário que remete às lembranças estocadas pelos personagens, há tanto tempo. Mas Benedict Andrews, veterano no teatro em sua estreia como cineasta – até então, só tinha como crédito audiovisual o teleteatro de uma montagem de Um Bonde Chamado Desejo –, utiliza as mesmas para tentar sair deste ambiente. Fazendo uso constante de flashbacks em lampejos, às vezes muito rápidos na tela, o diretor apresenta aos poucos os detalhes dessa relação que durou três meses e definiria os anos seguintes de suas vidas, jogando também com o ponto de vista dos envolvidos.
O recurso permite a Andrews usar uma estética diferenciada, abusando mais da steadycam, dos travellings e da câmera bem próxima do personagem, enquanto substitui muito do diálogo expositivo vindo da origem teatral, embora ainda esteja presente no texto adaptado pelo próprio Harrower e na mise-en-scène contida nas sequências do segundo ato.
O dramaturgo escocês, aliás, se inspirou em um caso real de pedofilia, a princípio não intencional, para criar sua peça, que trata de um crime sob a ótica de uma relação amorosa imersa em vários questionamentos éticos e morais, além de jurídicos. Durante um bom tempo, seu roteiro mantem a dúvida se irá banalizar a trama a la Lolita como sendo apenas mais uma história de amor ou continuará a trazer um instigante retrato das duradouras consequências psicológicas do abuso na vítima, que, por vezes, ainda fica suscetível à influência/dependência do abusador.
Mendelsohn carrega essa dubiedade também em seu personagem, mas o fato de Ray, bem ou mal, ter tido a oportunidade de uma nova vida após a prisão e a identidade alternativa, colabora com a segunda leitura, muito pertinente sobre como a sociedade acaba penalizando mais, de outras formas, a vítima em vez do algoz. Sem a chance de recomeçar com outro nome ou ao menos em outro lugar, Una ainda está presa ao passado, à ideia de que seu grande amor a abandonou, diferentes dos olhares alheios que permanecem a persegui-la e não a deixam viver em plenitude. Rooney Mara, cujo sotaque britânico solto atrapalha nas primeiras cenas, para depois a atriz engrenar no drama de sua personagem, não recebe o retorno do texto ao final. A narrativa entra em um clima de thriller um pouco destoante no terceiro ato, pincelando injustamente um pouco de loucura à personagem.
Talvez, isso seja o que mais prejudique Una em sua ideia de ser um filme provocativo e não definitivo no seu caminho de desvendar como “a garota de olhos azuis se tornou a puta de olhos azuis”, cantada por PJ Harvey, sem colocar na conta da própria jovem a culpa por uma relação onde sempre houve um adulto consciente.
Una (2016)
Duração: 94 min | Classificação: 14 anos
Direção: Benedict Andrews
Roteiro: David Harrower, baseado em sua peça “Blackbird”
Elenco: Rooney Mara, Ben Mendelsohn, Riz Ahmed, Ruby Stokes, Tobias Menzies, Poppy Corby-Tuech, Natasha Little e Tara Fitzgerald (veja + no IMDb)
Distribuição: Mares Filmes